O ex-policial militar Ronnie Lessa indicou em sua delação premiada com a Polícia Federal que a grilagem de terras na zona oeste do Rio de Janeiro ocorre por meio de fraudes dentro do cartório mais rentável do país. A prática é um dos motivos alegados para a morte da vereadora Marielle Franco (PSOL).
O delator indicou três pessoas que seriam as responsáveis por "fazer miséria" em documentos do 9º RGI (Registro Geral de Imóveis), responsável pelo controle de propriedade de 21 bairros no Rio de Janeiro. De acordo com dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), ele teve R$ 75,9 milhões de faturamento no segundo semestre do ano passado, o maior do país.
Em nota conjunta, a Associação de Registradores de Imóveis do Rio de Janeiro (Airj) e o 9º RGI afirmaram "que não há qualquer relação do cartório e de seus funcionários com o despachante citado durante a delação".
"A Arirj e o 9º Ofício se colocam inteira e ativamente à disposição das autoridades para investigação de quaisquer práticas criminosas", diz a nota.
A PGR (Procuradoria-Geral da República) acusou os irmãos Domingos e Chiquinho Brazão como mandantes da morte de Marielle. Um dos motivos, segundo a investigação da Polícia Federal, seria impedir que ela prejudicasse os interesses da família em práticas de grilagem de terras e para dissuadir outros integrantes do PSOL a adotar a mesma postura. Os dois negam envolvimento no caso.
O conflito seria, segundo a PF, o ápice de desavenças entre os Brazão e integrantes do PSOL desde 2008, quando o conselheiro teve o nome citado no relatório da CPI das Milícias.
Em depoimento aos investigadores, Lessa descreveu a ação de três pessoas, identificadas como Jorge Panaro, seu filho e um homem chamado de Geleia, dentro do 9º RGI para regularização de documentos de terrenos invadidos por milicianos.
"O Geleia é uma espécie de despachante. [...] Ele tem os acessos, levanta tudo o que o senhor imaginar. Ele vai levantar no 9° RGI. Vai levantar os documentos, vai conseguir carimbo, vai conseguir registrar com datas retroativas, eles fazem miséria no 9° RGI. O Geleia, Jorge Panaro, o filho do Panaro, esses caras têm um acesso muito grande ao 9º RGI", disse o ex-PM.
Jorge José Panaro é o nome de um ex-presidente da associação de moradores de Rio das Pedras. Lessa afirmou aos investigadores que ele já havia morrido. A reportagem não conseguiu identificar seu filho ou o homem chamado de Geleia.
Lessa descreveu o "modus operandi" para a grilagem de terras na zona oeste da cidade.
"Se eu cismar de entrar numa terra hoje e não houver resistência, em 15 dias eu já mando fazer um documento. Primeira coisa, limpa o terreno. Quando limpar o terreno, se existe um dono e ele não mandou limpar, esse dono vai mandar alguém ver: 'Quem é que tá mexendo no meu terreno?' Isso é óbvio. Limpou o terreno, [e] ninguém mexeu, ninguém botou a cara? Tu continua. Aí tu começa a botar cerca de arame farpado. Ninguém se manifestou? Tu já pode chamar o Geleia ou o Panaro."
O ex-PM afirmou aos investigadores que a recompensa pela morte de Marielle seria justamente a autorização dos irmãos Brazão para gerir um loteamento irregular na zona oeste da cidade. Ele também disse que tinha planos de invadir uma área na avenida Ayrton Senna, em ponto próximo à favela Gardênia Azul.
O 9º RGI já foi alvo de uma CPI na Assembleia Legislativa em 2011. O relatório final, porém, não apontou responsáveis e não conseguiu comprovar as suspeitas levantadas.
De acordo com a PF, documentos encontrados na casa de Domingos Brazão descrevem operações imobiliárias da família com indícios de grilagem de terras. O relatório, porém, não descreve algum envolvimento do 9º RGI.
Um dos terrenos em Jacarepaguá em nome da Superplan Administração de Bens Imóveis e Participações, de Domingos e sua mulher, teve sua matrícula aberta em 2021, após ação de usucapião de um casal formado por um eletricista e uma doméstica. Em agosto de 2023, a empresa de Brazão comprou metade da área, de 10 mil m², por R$ 110 mil.
A PF aponta suspeitas em relação à transação porque a prefeitura cobrou o ITBI avaliando o imóvel em R$ 7 milhões. A divergência levanta suspeitas de lavagem de dinheiro.
Outra transação chamou ainda mais a atenção dos investigadores. Trata-se de um terreno de 2.000 m² adquirido de um eletricista e sua mulher em 14 de maio de 2018, mas que só foi registrado em agosto de 2020.
A transação foi realizada dois meses depois da morte de Marielle e no mesmo dia em que foi publicada a lei apontada como ápice da divergência entre os Brazão e a vereadora.
"Os efeitos produzidos pela lei complemente 188/2018 poderiam acarretar incalculável valorização da extensão de terra adquirida pela Superplan, se não fosse a superveniente declaração de inconstitucionalidade do diploma legal meses depois", afirma a PF.
A PF afirmou no relatório final do caso enviado ao STF (Supremo Tribunal Federal) que as divergências de Marielle na Câmara Municipal ao projeto de lei complementar 174/2016, de autoria do então vereador Chiquinho Brazão, "encontram-se no cerne da motivação do crime".
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