“Est modus in rebus” (Há um limite nas coisas). Horácio 65 a.C.
Primeira advertência: este artigo será longo, não há como tratar e esclarecer o assunto em poucas palavras. Segunda advertência: “ninguém pode alegar desconhecimento da lei conforme o código penal brasileiro no seu Art. 21”. Terceira advertência: os eventos, razões e dispositivos legais que trataremos não são meras especulações políticas, são fatos que permitem análises e predições.
Parte I: O início, o alerta e a lei
No dia 26 de junho o Tribunal de Contas do Estado do Paraná, órgão responsável pelo acompanhamento e avaliação de contas públicas, incluindo as dos municípios, emitiu comunicado de alerta oficial ao prefeito municipal informando que de acordo com a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), a despesa total com pessoal ultrapassou 48,6% da Receita Corrente Líquida (RCL) no último quadrimestre (janeiro a abril) atingindo o Limite de Alerta. Bem, vamos entender o que isto significa, por partes.
Primeiro: o que significa a Lei de Responsabilidade Fiscal? Trata-se da Lei Complementar nº 101 de 2000 que estabeleceu regras e limites aos gestores públicos de forma que o uso do dinheiro público fosse, da norma em diante, responsável, estabelecendo regras e punições aos eventuais irresponsáveis.
Segundo: Receita Corrente Líquida (RCL) refere-se à quantidade de dinheiro disponível ao gestor público. Ela é aferida a partir de, e somente de arrecadação efetiva. Não importa para a RCL projeções futuras de arrecadação, até porque, ela é calculada no passado. Explico: para se saber a RCL de um determinado mês de referência o cálculo é feito a partir deste mês até os onze meses anteriores, não importando se estes doze meses estão ou não no mesmo ano fiscal. No cálculo entram os valores que os governos arrecadam, retiram-se as deduções de lei e aí tem-se a RCL. A importância da RCL é que ela é o parâmetro, o número pelo qual vai se calcular, entre outras coisas, os limites que se pode gastar com pagamentos do funcionalismo, gastos com pessoal.
Bem, sobre limites com pessoal a LRF estabeleceu que os municípios podem gastar até 60% da RCL com pagamento de pessoal (efetivos, comissionados, gratificações, horas extras, etc.). Todavia, este 60% é dividido em 54% para o executivo e 6% para o legislativo. Portanto, o executivo, o prefeito, pode gastar no máximo 54% da Receita Corrente Liquida (RCL) para pagamento de pessoal.
Mas, mesmo havendo um limite máximo a LRF estabeleceu níveis ou limites intermediários para que o executivo evite ultrapassa-lo. O primeiro limite é o chamado Limite de Alerta quando o prefeito gasta com pagamento de pessoal mais de 90% daqueles 54%. Imagine que a prefeitura tem mil reais de RCL. Neste caso 1000 reais são o total da receita do qual o prefeito pode gastar no máximo 54%, ou 540 reais com pessoal. Se a gente separar apenas o dinheiro para pagar pessoal da receita, temos que os 540 reais são 100% do disponível e 90% deles seriam 486 reais.
Parte II: Cianorte, Limite de Alerta e os riscos dos próximos limites
No caso de Cianorte atingiu-se o Limite de Alerta, o executivo gastou mais que 48,6 % da RCL, ou seja, gastou com pessoal mais de 90% dos recursos disponíveis para este fim. Quando este limite é atingido o TCE emite o alerta. Ainda neste limite não há qualquer consequência legal para o município, todavia, ele já é um fato técnico, o primeiro degrau da irresponsabilidade fiscal, que revela preocupação com as contas públicas e já é um fato jurídico por conta deste limite estar descrito na LRF. Um alerta porque se o município não tomar providências chegará ao próximo limite.
No próximo limite, o segundo degrau da irresponsabilidade, chama-se Limite Prudencial. Este limite é atingido quando o executivo atinge 95% dos recursos disponíveis para pagamento de pessoal que representaria 51,3% da Receita Corrente Líquida. Neste limite as sanções ao município se aplicam conforme a LRF em duas modalidades: sanções absolutas (sempre são aplicadas, sem exceções) e as sanções em regra (que podem admitir exceções).
As sanções absolutas no Limite Prudencial proíbem o prefeito por lei de criar cargos e reestruturar cargos com impacto financeiro, ou seja, ao se atingir este limite não se pode mais contratar ninguém e nem reestruturar carreiras, níveis ou letras que representem gastos. Nas sanções em regra, que se aplicam juntas com as absolutas ao se atingir este limite, o prefeito fica proibido de conceder reajustes ao funcionalismo a não ser por decisão judicial; fica proibido de prover cargos, a não ser por morte ou aposentadoria de servidores e fica proibido de pagar horas extras, a não ser em eventos emergenciais.
Cianorte ao que se sabe ainda não está no Limite Prudencial, mas, talvez não esteja muito longe. Explico: o prefeito enviou um projeto de lei sob nº 38/2023 para a Câmara solicitando autorização para contratar empréstimo no valor de até 15 milhões de reais. No mesmo projeto pede autorização para realizar quaisquer outros empréstimos necessários para pagar estes 15 milhões, uma autorização amplíssima e muito heterodoxa, por assim dizer.
Para esclarecimento da Câmara no sentido de fornecer informações sobre a pretendida transação de crédito em até 15 milhões, consta de relatório da Secretaria Municipal de Fazenda que a taxa de juros a ser paga será de 177%; prazo de 120 meses (dez anos a cidade pagando) com carência de 12 meses, ou seja, começa a pagar em meados de agosto do ano que vem se os vereadores aprovarem a operação. A mim já parece um absurdo, todavia, a ser tratado em outra oportunidade.
Mas, voltando ao que este pedido de empréstimo milionário interessa ao caso que discutimos aqui, para orientar a Câmara de que o empréstimo poderia ser autorizado, o executivo também anexou na proposta uma certidão do TCE que esclarece que o município tem margem de endividamento, portanto, não há impedimento ao empréstimo. Por outro lado, nesta mesma certidão do TCE emitida em 22 de julho de 2023, quatro dias antes da divulgação do alerta, informa que a despesa com pagamento de pessoal atingiu 49,11% da RCL no primeiro quadrimestre, ou seja, não é que Cianorte tenha atingido os 48,6% ou 90% dos recursos para pagamento de pessoal, já passamos de 90%.
A rigor, financeiramente o que nos separa do Limite de Alerta já rompido para a cidade começar a sofrer as primeiras consequências legais, ou seja, entrar no Limite Prudencial, hoje é menos de 5% e diminuindo, até porque há poucos dias foram criados mais trinta cargos comissionados para a estranha Coordenação de Vigilância Escolar (mais gastos com pessoal), aprovada pela Câmara quando já no final de abril atingimos o primeiro degrau na irresponsabilidade fiscal.
Bom, e se continuar assim, se continuar crescendo o gasto com pessoal como a exemplo dos trinta comissionas para vigilância nas escolas? Deste ponto de vista, o que nos separa da tragédia fiscal hoje é menos de 10%. Sim, quando passar daqueles 54% da RCL, o caos será a realidade. Ao se passar do Limite Total, os 54%, o município fica impedido de receber repasses da União e do Estado do Paraná, já imaginaram não poder receber repasses da União e do Estado? Fica ainda o prefeito proibido de contratar créditos, a exemplo deste que busca fazer em 15 milhões e o município não pode mais oferecer garantias.
Como é o caos, ainda não acabou. Neste estágio do rompimento do Limite Total deverão se adotar as seguintes medidas em ordem: demissões em no mínimo 20% de cargos em confiança; próxima, demissão de servidores não estáveis (PSS por exemplo) e finalmente, demissão de servidores estáveis para se buscar o equilíbrio fiscal. Sim, servidores estáveis de atividades não exclusivas de Estado podem ser demitidos neste caso. Apenas segurança pública e justiça não podem ser atingidos, saúde e educação podem ter seus quadros de carreiras reduzidos ou extintos.
Agora, duas curiosidades quando o Limite Total é rompido (esta tragédia que para nós hoje é menos de 10% para se alcançar). A primeira curiosidade é que se o Limite Total for rompido e não é o último ano de mandato do prefeito, a lei dá ao gestor dois quadrimestres para buscar a recuperação antes do impedimento de poder receber repasses federais ou estaduais. Mesmo operações de crédito poderão ser pedidas desde que o dinheiro vá exclusivamente para pagamento de indenizações para servidores estáveis ou não que possam vir a serem ser demitidos.
Agora, se o Limite Total for rompido no último ano de mandado, as medidas e sanções são imediatas, não há os dois quadrimestres de recuperação antes das sanções. Significa dizer que se o Limite Total for rompido no final do último ano de mandato de um prefeito, o próximo sendo outro, terá nas suas costas as sanções também e das quais não foi o responsável por produzi-las.
Agora vejam, a lei permite demitir funcionários estáveis de entre outras áreas a saúde e a educação. Imaginem que cheguemos a este estágio. Bem, a saúde e a educação não podem parar, mas, seus servidores ou serão reduzidos ou os cargos extintos com a permissão da lei, o que fazer? Oras, esta é a oportunidade em que se poderia contratar para administrar a saúde uma empresa, privatizar por prestação de serviços assim como a educação. Se é prestação de serviços não é mais pagamento de pessoal, resolveu-se o problema da folha. Ou seja, o caos é uma oportunidade de negócios à iniciativa privada para tomar para si serviços públicos essenciais.
Bem, estamos entre o primeiro e o segundo estágio da irresponsabilidade fiscal que se atingir seu Limite Total o prejuízo será incalculável para o funcionalismo público, para os serviços públicos e para a cidade como um todo. Menos de 10% que nos separam do Limite de Alerta Rompido para o Limite Total, é muito pouco para arriscar a saúde financeira de uma cidade toda, não se pode apostar nisso como risco de negócio.
Então o que fazer? Duas coisas, uma de cada vez ou as duas juntas, depende do gestor e suas intenções. Uma: reduzir imediatamente gastos com pessoal não efetivo, comissionados especialmente (que Cianorte já coleciona mais de uma centena e meia). Não me parece que será o caminho, em pleno Limite de Alerta foram gratificados mais 30 cargos. Duas: aumentar tributação (aumento de impostos) para crescimento da Receita Corrente Líquida com ou sem reforço na fiscalização tributária mais dura do contribuinte (cobrança de taxas, alvarás, multas, etc.)
Parte III: Gestão Pública, Câmara de Vereadores, responsabilidades e escolhas
A verdade é que não há mágica, por isso gestão pública é complexa e avessa a aventuras. Tem que se entender de administração PÚBLICA, tem que se entender de contabilidade PÚBLICA e tem que se entender de direito PÚBLICO. Se não entende, ouça a quem entende e por favor, siga ao que ouviu. Alguém pagará a conta do descontrole e desde já. Se o executivo quiser sair do Limite de Alerta e voltar aos parâmetros de Responsabilidade Fiscal terá de adotar medidas: ou com os comissionados (perdendo alguns cargos), ou com o funcionalismo (redução de gratificações, horas extras, progressão de carreira, etc.) ou com a população com maior rigor na fiscalização tributária e, infelizmente, com eventual aumento de impostos futuros.
Bem, notadamente a Câmara tem a obrigação legal o poder/dever de fiscalização do executivo que vai para além de verificar obras ou projetos, trata-se de fiscalizar orçamento, finanças e contabilidade públicas também. Por óbvio quando a Câmara aprovou mais 30 cargos gratificados, em pleno Limite de Alerta, pôde-se constatar que o relatório do TCE só saiu dia 26 de junho com dados referentes de janeiro a abril, ou seja, a Câmara não sabia. Também o executivo quando enviou a mensagem para a criação dos 30 cargos em maio informou que os limites estavam seguros.
De fato, ao que parece neste imbróglio, e no que acredito (ao contrário as implicações seriam gravíssimas) nem sequer o executivo sabia que o limite fora ultrapassado senão não informaria à Câmara de outra forma. Documento da lavra do prefeito municipal esclarece que o impacto financeiro para a criação dos 30 cargos gratificados elevaria o índice de gastos com pessoal em 2023 para 48,29% e para 48,43% para 2024 e 2025, como ele mesmo ressalta, abaixo do Limite de Alerta de 48,6% (já estamos desde o dia 22 de junho em 49,11). Neste caso quem está correto, quem acertou os números? O executivo ou o TCE? Por óbvio o TCE, o que revela preocupantemente algum desconhecimento da administração de seus próprios números.
Quanto aos nobres vereadores, por óbvio que a Câmara não tem os recursos técnicos e tecnológicos para fazer as avaliações que o TCE faz, e nem faria sentido ter uma estrutura como a dele. Todavia, quero crer que se tivessem esperado pelo relatório quadrimestral do TCE não teriam aprovado 30 cargos gratificados em pleno Limite de Alerta (cargos para funções absolutamente discutíveis), o que nos colocou mais perto do próximo limite e do inicio das sanções.
Talvez seja prudente à Câmara doravante espelhar-se nos dados do TCE para além das informações do executivo, que neste caso se comprovaram erradas, para orientar votações que impliquem em gastos públicos. Penso eu, por exemplo, que antes de autorizar-se uma operação de crédito de 15 milhões, uma dívida de dez anos, com 177% de juros, seria, ao meu juízo, prudente convocar o executivo para que antes de tudo apresente algum plano que tenha para a recuperação fiscal, para que Cianorte saia do Limite de Alerta.
Uma Câmara com a autonomia, com o poder, com o conhecimento, com o dever de quem existe tão somente para representar o interesse público para além de afinidades eletivas particulares é o que se espera. Menos de 10% nos separam de uma história trágica e que pode ser evitada se executivo e legislativo agirem já. Se acontecer o pior, ha quantas mãos esta história será escrita e como lembraremos de seus autores?
O Limite de Alerta não é definitivo, pode regredir ou evoluir para o caos, o primeiro capítulo já está registrado, apagá-lo ou continuar escrevendo é uma questão de escolha e de responsabilidade até porque, ninguém pode alegar desconhecimento da lei, ninguém. “Est modus in rebus”.
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