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PÂNICO MORAL E A QUESTÃO DO ABORTO

Apesar do recuo do Congresso Nacional quanto à urgência do PL 1904/24, diversas manifestações contrárias e a favor do aborto ocorreram em todo o Brasil nesses últimos dias. O PL, do ponto de vista legislativo, é um retrocesso na garantia de direitos humanos e reprodutivos conquistados nas últimas décadas, uma vez que prevê punições de até 20 anos, criminalizando mulheres e demais corpos que gestam em casos de aborto já legalizados pelo Código Penal Brasileiro e por jurisprudência, como risco à vida da pessoa gestante, gravidez decorrente de estupro e mal desenvolvimento fetal devido à anencefalia. De acordo com o Presidente da Câmara, o deputado Arthur Lira (PP), o projeto deve voltar à discussão após as eleições de outubro. Enquanto o trâmite legislativo não segue, guerras culturais e disputas narrativas atravessam o debate público, mobilizando discursos que geram aversão e pânico moral na população em geral.



Esta estratégia de condenação moral não é uma discursividade nova em termos de convencimento de opinião. Na década de 1970, em represália às conquistas femininas sobre o corpo e direitos, às agendas de igualdade de gênero das agências internacionais (ONU, OMS, UNESCO) e aos avanços nas tecnologias de reprodução assistida e planejamento familiar (inseminação artificial, controle de natalidade, pílula anticoncepcional), o Vaticano anunciou-se como instância absoluta de julgamento, primeiramente, elaborando sua Teologia do Corpo, base doutrinária que atrela a sexualidade a uma visão esponsal ou casta, para, em seguida, opor-se à Ciência, em particular à Biologia, de maneira enviesada e com a finalidade de determinar uma moralidade que considerasse o aborto como atentado às leis divinas e como desrespeito à doutrina cristã. Nesse ínterim, embargar a autonomia sexual e reprodutiva também se tornou tanto uma questão religiosa como política para a chamada “nova direita” estadunidense, que reagiu aos movimentos feministas, negro e LGBTQIAPN+, acusando-os como responsáveis pelo declínio dos valores familiares no Ocidente. Nas décadas de 1980 e 1990, essas mesmas posições ideológicas impulsionaram diversas igrejas evangélicas a realizarem campanhas contra o direito de mulheres e pessoas gestantes a interromperem a gravidez. A partir dos anos 2000, o cenário de conservadorismo cultural e social americano influenciou países sul-americanos como o Brasil; políticas/os de diferentes partidos guinaram-se desfavoráveis às questões vistas como contrárias aos valores tradicionais da família, entre elas, a educação sexual e preventiva nas escolas, o casamento entre pessoas do mesmo sexo/gênero e o aborto.


No caso do aborto, o pânico moral se faz presente em recursos como filmes, textos, imagens apelativas, catecismos, pregações ou campanhas educativas popularizadas pelos movimentos “pró-vida”. A performance apresentada por uma contadora de histórias durante sessão realizada no Senado, no dia 17 de junho, com a encenação de texto contrário ao aborto legal é um exemplo de como a complexidade do tema pode ser reduzida a uma narrativa populista, porém com grande poder de inculcação, especialmente nas comunidades mais simples, onde as pessoas desejam respostas claras para os dilemas sociais e se apegam ao religioso como uma forma de superação ou consolo aos seus problemas diários.


Operando como uma “pedagogia do medo”, os discursos coercitivos e condenatórios usam de argumentos apelativos como: “o que seria da humanidade se a mãe de Einstein tivesse abortado”; “arrependimento de alma, sofrimento emocional feminino e punição no purgatório”; “dores terríveis causadas no feto durante a assistolia”, “coraçãozinho que parou de bater”, “grito silencioso do feto”, “mau caratismo de feministas". Essas posições – com grande apelo emocional e propositadamente distorcidas –  têm a finalidade de gerar aversões desproporcionais, negligências à situação real, restrição das liberdades civis e dos direitos humanos, perseguição, discriminação e marginalização das pessoas que recorrem ao aborto. Um exemplo pode ser observado no filme "O Grito Silencioso". Lançado em 1984, o filme ainda é frequentemente usado em palestras devido às imagens de ultrassom que mostram um aborto em andamento. O roteiro foi projetado para reforçar argumentos morais, divulga informações enganosas acerca dos processos embriológicos, sobre a formação de órgãos e sistemas, sobre a capacidade sensorial ou a percepção da dor e não se aprofunda nas proposições científicas que definem a vida.


Tais táticas falham em promover uma discussão completa sobre o tema e em ponderar sobre os reais motivos que levam as pessoas ao aborto. Ou seja, são recursos que não tangem os aspectos legais e de saúde, desconsideram as circunstâncias sociais e psicológicas envolvidas ou, quando as consideram, reduzem-nas à culpabilização ou à revitimização, não emitem pareceres concretos sobre a saúde gestacional e, tampouco, sobre o desenvolvimento fetal, mascaram os dados estatísticos sobre a morte de grávidas e sobre a omissão do Estado em prestar atendimento seguro. Além disso, geram o efeito de endossar o abandono parental masculino ao delegar a responsabilização somente às mulheres, impedem o acesso aos direitos reprodutivos e ao planejamento familiar, negam a educação sobre o corpo às crianças e adolescentes, promovem misoginia e LGBTfobia e desamparam as vítimas de abuso, estupro e outras violências sexuais. Os efeitos de todos esses impactos são mais vivenciados, vale dizer, pelas pessoas pertencentes às comunidades mais simples e com menos recursos financeiros.


Ponderar o aborto de maneira aberta e democrática, além de pautá-lo como uma questão de saúde pública, significa também questionar as narrativas simplistas, unilaterais ou do medo, perguntando-se, sobretudo, a quem essas narrativas interessam ou representam e quais seus impactos no acesso aos direitos reprodutivos, na saúde e na superação das desigualdades sociais.

 

Para saber mais:

 

- ABORTO: como filme dos anos 1970 fez evangélicos se posicionarem contra o aborto. BBC News, 06 mai. 2022. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/articles/c1vv969q6keo>. Acesso 20 jun. 2024.

 

- BIROLO, F. Aborto no Congresso Nacional: padrões atuais das disputas. In: JURKEWICZ, R. S. Entre dogmas e direitos: religião e sexualidade. Jundiaí: Maxprint, 2017. Disponível em: <https://encr.pw/L7iq1>. Acesso 21 jun. 2024.

 

- ROSADO-NUNES, M. J. O tema do aborto na Igreja Católica: divergências silenciadas. Cienc. Cult., v. 64, n. 2, p. 23-31, 2012. Disponível em: < https://acesse.dev/jmssx>. Acesso 20 jun. 2024.

 

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Fabiana Carvalho é Bióloga de formação; Mestra em Educação; Doutora em Educação para Ciências; Pós-Doutora em Educação Científica e Tecnológica. Interessa-se por Pesquisas nas Educações para o Corpo, Gênero, Sexualidade e Diferença, considerando os Estudos Feministas e LGBTQIAPN+. Navega pelos territórios da Biologia e suas imbricações com a Cultura, articulando críticas, discussões biológicas e também literárias sobre diversas questões do cotidiano. Colabora com o Canal “Bisbilhoteiro”, assinando textos para a Coluna “Bisbi Diversidade”.

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