A proibição da frequência de crianças a lugares tem crescido mundialmente. E não estou me referindo a lugares nos quais tradicionalmente elas não podem entrar, como uma casa de striptease ou um cinema que esteja exibindo um filme pornográfico. São restaurantes, hotéis, resorts, bares, teatros etc. Há cinemas que oferecem salas para uso exclusivo de adultos, mesmo que os filmes nelas exibidos não o sejam. Há estabelecimentos que criam áreas específicas para crianças, como uma Empresa Aérea que informa aos clientes em quais assentos haverá uma criança para que os clientes possam selecionar poltronas distantes, criando quiet zones.
Essa crescente tendência de intolerância com as crianças vem sendo chamada de Childfree, ou seja, “livre de crianças”. O movimento nasceu por volta dos anos de 1970 nos EUA e, a princípio, defendia uma escolha legítima, a de uma pessoa não gerar filhos, caso não desejasse. Posteriormente, a partir dos anos 1980, o movimento assumiu novos contornos: expandiram a ideia para a possibilidade de frequentar ambientes em que crianças menores de 12 anos não fossem permitidas.
Ou seja, do “não quero ter filhos”, o Childfree foi para o “não gosto de crianças” ou "não quero conviver com crianças", chegando a extremos como o escrito numa placa na frente de um bar em São Paulo: “aqui seu cão é bem-vindo, mas, crianças, favor amarrá-las ao poste!”. Após fortes reações nas redes sociais, o bar alegou tratar-se de uma brincadeira e retirou a placa. Sabemos bem que uma ação só pode ser considerada “brincadeira” quando todos os envolvidos se divertem. Não foi esse o caso.
Nas redes sociais dos grupos Childfree, os integrantes afirmam que querem o direito ao sossego, à tranquilidade e a não conviver com a falta de limites, a má educação, os gritos, as birras e o choro das crianças.
Estabelecimentos comerciais justificam não ter espaços e/ou estrutura adequados para receber crianças, quando, na verdade, deveriam adaptar seus ambientes para receber todas as pessoas, sem diferenciá-las.
Já que as crianças não circulam sozinhas, a discriminação inclui, principalmente, as mães, que culturalmente são as que mais se responsabilizam pelos filhos. No Brasil, há mais de 11 milhões de mães solo e elas são as mais afetadas por esse tipo de pensamento. Em geral, essas mães não possuem uma rede de apoio para ajudar a cuidar dos seus filhos e precisam levá-los aos lugares dos quais gostam ou precisam frequentar. Além de terem de lidar com as consequências desse tipo de intolerância na condição emocional de seus filhos, as mães ficam, com essas proibições, mais isoladas da convivência social, ou seja, mais solitárias na maternagem.
O direito de optar por ter ou não ter filhos é totalmente legítimo e válido. Porém, não aceitar crianças em espaço público é discriminatório e
infringe os direitos delas e de seus responsáveis.
É importante não perdermos de vista que crianças são seres em formação e a convivência com adultos, professores, a vida em sociedade, a frequência a todos os tipos de ambientes que não coloquem sua vida em risco ou que não tenham programação proibitiva a essa faixa etária, é salutar e necessária. Impedir a socialização delas em qualquer espaço não colabora com seu desenvolvimento. Pelo contrário, afastar as crianças do convívio vai dificultar o aprendizado social que ocorre de várias maneiras, inclusive por meio das interações com os adultos.
Há muitas questões complexas que permeiam a proibição da frequência das crianças em certos ambientes. Podemos, por exemplo, indagar: qual seria o padrão da criança "desejada" pelos intolerantes? Silenciosa, agradável, limpa, bem-vestida, que não derruba coisas, não corre, não brinca, não experimenta o mundo? Por quem e como foi estabelecido esse padrão? Ele é real? Ora, crianças falam alto, gritam, são espontâneas, mexem nas coisas. Isso não é falta de educação, é simplesmente a infância se manifestando.
Além disso, se uma parcela da sociedade entende que as crianças não estão obtendo êxito em sua jornada social, o olhar precisa se estender àqueles que são responsáveis por criá-las e inseri-las no mundo, isto é, os adultos (inclusive os intolerantes), os pais, as escolas. Será que são apenas as crianças que estão apresentando inabilidades no convívio social? E os adultos?
Todo esse movimento de intolerância à infância tem causado reações diversas. Esta coluna foi escrita como uma reação. Mas há inúmeras outras. Cito como exemplo o movimento que surgiu em São Paulo sob o título "Vai ter criança sim". Os organizadores convocam as pessoas a ocuparem, junto com seus filhos, vários lugares da cidade. No site do grupo está escrito: "Saia com as crianças! Viaje, passeie, leve seus filhos, sobrinhos, netos, vizinhos, para onde você acha que eles devem ir!"
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