Promotores da Justiça Militar de São Paulo, que recebem as denúncias de todos os crimes praticados por policiais militares, estão preocupados com o que percebem como uma "mudança na cultura da PM" paulista que fez aumentarem, nos últimos dois anos, os casos de violência policial que chegam ao órgão.
O período coincide com o início do mandato do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e da gestão de seu secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite. O capitão reformado da PM, que foi desligado da Rota (tropa de elite da PM) por excesso de mortes, é apontado como uma liderança que estimula o confronto e o uso letal da força, ao mesmo tempo em que relaxa punições por práticas fora do procedimento operacional padrão.
"Até 2022, quem estava prestigiado na corporação eram comandantes de perfil legalista, que prezam pelo cumprimento das regras e o respeito à hierarquia e à disciplina. Disso resultou uma queda da letalidade policial", avalia Marcel Del Bianco Cestaro, que atua há sete anos perante o Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo (TJM-SP). Entre 2020 e 2021, as mortes provocadas por policiais caíram 30%, de 814 para 570.
"Após 2022, com o novo secretário, vimos um movimento contrário.
A impressão é a de que a abordagem violenta aumentou porque houve um aumento dos casos de interação com uso de arma de fogo. Os policiais estão atirando mais, mesmo quando não matam", afirma.
O relato do promotor é corroborado por ações recentes de policiais militares registradas em vídeo por câmeras de monitoramento. Em novembro, o estudante de medicina Marco Aurélio Cardenas Acosta, 22, foi morto à queima-roupa por um policial militar depois que deu um tapa no retrovisor da viatura e entrou em um hotel, onde resistiu à prisão. Nesta semana, vieram à tona gravações que mostram um policial fora de serviço que atirou pelas costas seguidas vezes contra um homem que fugia de um mercado depois de furtar produtos de limpeza.
Procurada, a Secretaria da Segurança Pública nega qualquer mudança de cultura. "Todas [as forças] continuam atuando sob o absoluto rigor da lei e o respeito aos direitos humanos. As polícias do estado não compactuam com desvios de conduta de seus agentes, punindo exemplarmente àqueles que infringem a lei."
Na terça (3), Derrite postou em suas redes sociais nota em que dizia que o legado da PM não poderia ser manchado por "condutas antiprofissionais" em "ações isoladas".
Segundo Cestaro, a aquisição de armas não letais, que possibilitam ao policial defender a integridade de alguém sem necessariamente usar a arma de fogo, e a implantação de câmeras corporais, ocorrida em 2020, foram fatores importantes para a queda na letalidade até 2022.
O promotor argumenta que "as câmeras corporais não são apenas instrumento de produção de provas, mas também de verificação da boa atuação policial e de melhorias para treinamentos, além de possibilitar um padrão de fiscalização e acompanhamento da atividade policial".
Isso porque, explica ele, ao final de cada turno, o comandante de cada equipe selecionava de maneira aleatória as filmagens de uma câmera operacional e fazia uma análise para fins de instrução. "Mesmo quando não havia ocorrência, esse monitoramento mostrava para os policiais que eles estavam sendo acompanhados, receberiam láureas no caso de mérito por boa conduta e seriam punidos em caso de ilegalidade."
"O que percebemos é que essa cultura mudou. Os próprios comandantes deixaram de ser estimulados a fazer a análise aleatória das câmeras, que muitas vezes não são ligadas pelos policiais quando vão atender a uma ocorrência", afirma.
As câmeras usadas hoje por policiais militares de São Paulo gravam de forma ininterrupta imagens de baixa qualidade e sem som. Quando o policial entra em uma ocorrência, ele aciona um dispositivo que passa a gravar imagens com qualidade HD e registro de som.
Segundo Cestaro, essa mudança de cultura de 2022 para cá culminou com suspensão do uso obrigatório de câmeras por policiais e pela abertura de licitação pelo governo de São Paulo para a contratação de novas câmeras corporais. O novo modelo, contratado da Motorola, não grava ações ininterruptamente, e precisa ser ligado e desligado manualmente pelo policial.
"O mau policial não vai ligar a câmera para cometer um crime", opina o promotor. Ele questiona o destaque que o governo tem dado a funcionalidades do novo equipamento, como reconhecimento facial e leitura de placas. "Se o principal pressuposto do equipamento é fiscalizar a atuação policial, as novas câmeras se mostram deficientes na medida em que não vão registrar integralmente o turno de serviço do policial."
O promotor avalia que a mudança de cultura da PM é nociva à corporação e a sua prestação de serviço. "Ser leniente com a violência não vai gerar uma polícia combativa e íntegra. O comando que não cobra o respeito às normas, como o uso correto da câmera operacional e da força letal, passa uma cultura de desrespeito que estimula a violência e a corrupção policial."
A Defensoria Pública de São Paulo entrou com uma ação do Supremo Tribunal Federal (STF) para reverter a decisão do Tribunal de Justiça que suspendeu o uso obrigatório de câmeras corporais em operações policiais no estado.
O ministro Luís Roberto Barroso rejeitou o pedido da Defensoria, mas pediu esclarecimentos ao governo paulista, que precisa explicar detalhes do novo contrato e relatórios sobre testes feitos com os novos equipamentos.
O governador Tarcísio pediu a prorrogação do prazo inicialmente estipulado por Barroso, dia 28 de novembro, e agora precisa prestar as informações solicitadas pela corte até o final desta semana.
A pasta da Segurança afirma que o governo está ampliando em 18,5% o número de câmeras da Polícia Militar e que os "novos dispositivos representam um avanço em relação aos equipamentos atualmente em uso", com maior autonomia de bateria, conectividade e acionamento remoto.
"As novas COPs estão em conformidade com a Portaria nº 648/2024 do Ministério da Justiça e Segurança Pública e demais normas vigentes", diz a secretaria.
*RAIO-XMARCEL DEL BIANCO CESTARO, 41
Promotor de Justiça há 15 anos, e atua há sete na Justiça Militar do Estado de São Paulo. Formado em direito pela USP, foi defensor público em São Paulo de 2007 a 2009.
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