A retórica ofensiva da "pauta de costumes" não desapareceu. E, nesse ano de eleição para representantes municipais, reaparece nos debates políticos.
Desde 2018, quando iniciaram as campanhas dos candidatos à presidência da República, o tema "pauta de costumes", ou "agenda de costumes", passou a ser reiteradamente abordado. Agora, mais uma vez em um período eleitoral, esse conjunto de propostas volta a ocupar lugar central no debate político. São proposições defendidas, sobretudo, pelos partidos políticos do campo da direita.
Costumes são ações habituais que, reiteradas e generalizadas, tornam-se práticas sociais. São os modos habituais de agir que se estabelecem pela repetição ou por tradição. Cada época constrói costumes diferentes e cada grupo social tem costumes peculiares. Um exemplo de costume que se transformou: no passado, era comum que os pais utilizassem da violência física para educar seus filhos. Nas últimas décadas, várias transformações sociais determinaram não apenas a crítica a esse costume, como também a elaboração de leis que protegem as crianças e punem os agressores. Afinal, as crianças são cidadãs com direitos sociais.
"Pauta de costumes"
O pensamento que fundamenta a "pauta de costumes" não é um bloco homogêneo. Em comum há a valorização do passado, da tradição, da autoridade baseada na hierarquia e na defesa do chamado "cidadão de bem". Há também o estranhamento ao diverso, ao outro. Por conta disso, criticam, por exemplo, a entrada de imigrantes no Brasil.
Os defensores dessa pauta conservadora também professam a necessidade da diminuição do tamanho do Estado e, consequentemente, o desmonte das políticas públicas. Ao mesmo tempo, há uma supervalorização da esfera privada, na qual o tema "família" é fundamental. Mas não são defendidos todos os arranjos familiares, somente um modelo de família, a heteronormativa, monogâmica e cisgênero.
Os que aderem a "agenda de costumes" são contrários, portanto, ao movimento LGBTQIA+, ao feminismo, ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, à adoção por casais homossexuais e ao aborto (mesmo em caso de estupro e nascimento de anencéfalos). Atribuem à mulher somente o papel da reprodução e da educação moral dos filhos. São contrários aos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres. Os reprodutivos são direitos básicos de decidir livre e responsavelmente o número, a frequência e o momento para ter filhos. Os sexuais são os direitos de ter controle sobre as questões relativas à sua sexualidade, inclusive sua saúde sexual e reprodutiva, e a decidir livremente a respeito dessas questões, livres de coerção, discriminação e violência. Os que intervêm a favor da tradição dos costumes não concordam com o fato de que os direitos sexuais e reprodutivos são parte dos Direitos Humanos e que a questão da sexualidade e da reprodução são dimensões da cidadania.
Assim, a "pauta moral" é contrária às políticas de equidade de gênero e ao movimento feminista. Aliás, as feministas e a comunidade LGBTQIA+ são entendidas como elementos de desintegração da família tradicional. Como se colocassem em risco o modelo tradicional de família.
Na área educacional, a "pauta de costumes" abraça a proposta do homeschooling (educação domiciliar), o Projeto Escola sem partido e rejeitam o que, equivocadamente, chamam de ideologia de gênero e o “kit gay”, alusão a um suposto material didático que seria entregue em
escolas para crianças aceitarem com naturalidade
as relações homoafetivas. De fato, esse kit jamais existiu, mas as “fakes news” serviram para ratificar o posicionamento de defesa da família tradicional. Os que abraçam a "pauta de costumes" temem a "transmissão" da homossexualidade e do feminismo às crianças
e jovens, que poderiam não valorizar mais as tradições familiares e o patriarcalismo. Nesse sentido, defendem a retirada do debate de gênero e sexualidade das escolas. São contrários também ao acesso e permanência de travestis e transexuais nas escolas.
No campo educacional, os defensores da “pauta de costumes“ também são favoráveis à transformação das escolas públicas em “escolas cívico-militares”. Entendem que a presença de militares garantiria o conservadorismo com o acesso dos alunos a uma formação cívica e moral, que valoriza o respeito, a disciplina, a hierarquia e o patriotismo.
Ainda no campo educacional, temos um exemplo nefasto no Paraná, onde o governo está propondo a implantação de um projeto intitulado Parceiros da Escola, que visa transferir a empresas privadas a gestão administrativa de aproximadamente 200 escolas estaduais. Trata-se de um violento ataque à educação pública e à democracia. Esse projeto também é defendido pelos que aderem à pauta de costumes, por entenderem que os professores da rede pública são todos comunistas e a favor da suposta “ideologia de gênero”, o que é uma absoluta inverdade. Os privativas são de fato defensores do desmonte do Estado democrático.
Faz parte ainda da " pauta de costumes" a defesa da redução da maioridade penal, de propostas que simplificam e ampliam o registro, a posse e a venda de armas no país, o excludente de ilicitude (que suaviza as penalidades de militares e outras forças de segurança que matem durante operações de Garantia da Lei e da Ordem) e
a rejeição a projetos de descriminalização das drogas.
"Pauta de costumes" X direitos sociais
Os defensores da "pauta de costumes" simplificam a realidade e desconsideram a história e os direitos sociais adquiridos e já consolidados legalmente. Gastam muita retórica nessa "agenda moral" e criam um ambiente tenso, recheado de polêmicas. Enquanto isso, problemas reais, como a desigualdade econômica e social, a fome e o desemprego são negligenciados. Como enfatizam mais a esfera privada, em detrimento da pública, acabam por desconstruir políticas já estabelecidas. Um exemplo: o Congresso Nacional aprovou em 2022 uma lei que cria o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual. A lei foi vetada por Bolsonaro, num movimento de desrespeito principalmente às mulheres de baixa renda. Depois, o Congresso derrubou o veto. Mas, infelizmente, até agora o projeto não foi implantado, sob a alegação da falta de orçamento.
De fato, a luta feminista, a antirracista, a da comunidade LGBTQIA+, são baseadas em direitos sociais garantidos pela legislação brasileira. Tratar essas questões como apenas da ordem dos costumes é negar essa construção histórica. É uma tentativa de desconstruir os direitos sociais já adquiridos.
Nas sociedades democráticas, caracterizadas pela pluralidade, todos os grupos sociais e seus diferentes costumes devem ser acolhidos. O papel do Estado e da legislação é o de criar mecanismos que ampliem as oportunidades para todos os segmentos sociais terem direito a voz e vez, principalmente das minorias. O direito à diversidade cultural foi incorporado à constituição brasileira de 1988, enfatizando a inclusão social como um preceito básico da democracia.
A retórica ofensiva da "pauta de costumes" encontra abrigo no fundamentalismo religioso que se espalhou no Brasil. E, para nós, mulheres, essa agenda é nefasta. Nega nossos direitos e nos coloca num papel de subserviência ao patriarcalismo. Um exemplo extremamente controverso desse posicionamento reside na frequente crítica que fazem à Lei Maria da Penha (que protege as mulheres contra a violência), e na defesa do armamento das mulheres para o enfrentamento de possíveis violências. Ao invés de defender os direitos legais das mulheres, estimula-se reações violentas para combater a violência.
A "pauta de costumes" é de modo geral extremamente nociva para as mulheres e para os direitos sociais em geral. Para contra atacar essa perversa retórica temos que estar munidas de conhecimentos sobre a legislação que protege nossos direitos. É fundamental defendermos a necessidade de que o debate sobre os direitos humanos e, em especial o das mulheres, seja realizado de modo científico nas escolas, garantindo uma formação inclusiva.
Enfim,
Devemos continuar alertas, pois a luta pela democracia é permanente. Nesse ano de eleição, em especial, atentemos para a possibilidade de assumirem cargos municipais os defensores da nociva pauta de costumes.
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