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Foto do escritorIvana Veraldo

O que acontece quando nada acontece?

 “Poderoso é aquele que descobre as insignificâncias

O livro sobre nada de Manoel de Barros

 

O envelhecimento nos enche de dissabores e sinto-os todos os dias. É uma dor aqui, outra acolá, uma perda emocional, um esquecimento, uma repetição  de histórias… Mas, envelhecer também pode ser muito bom. 



Tenho gostado, por exemplo, de observar demoradamente as coisas banais, simples e ordinárias. Saboreio o cotidiano como o  lugar da experiência do viver, o chão que habito e onde  finco minhas raízes.

 

Para muitos, a repetição das experiências corriqueiras é desagradavel, causa aborrecimento e cansaço. Como diria um amigo “enjoa-se” muito facilmente do simples. O dia a dia  é vivido “no automático” e não se presta atenção no que acontece quando nada de muito extraordinário ocorre.

 

É possível que a velocidade da circulação  de informações e imagens sobre o mundo cause a sensação de que algo novo se manifesta em algum lugar o tempo todo.

Presta-se mais atenção aos acontecimentos que aparentam ser extraordinários, espetaculares ou inesperados; os que supostamente escapam da rotina do cotidiano, sejam fatos bons ou ruins.

 

Estamos poluídos de notícias e com certeza isso dificulta a capacidade de distinguir o que realmente é diferente e o que, parece diferente, mas é apenas a repetição de algo que já acontece. Bertold Brecht diria, “lá vem o velho vestido de novo”. Por exemplo, os ataques entre o Hamas e Israel, que são televisionados e espetacularizados, parecem romper uma rotina, porém são novas manifestações de um velho conflito.

 

Pois eu já estou numa fase da vida em que sinto prazer nas coisas simples, que se repetem, que são esperadas. Estou imersa no cotidiano e  presto atenção nas pequenas ações, gestos e experiências. Uma mensagem de bom dia, recebida todos os dias, aquece meu coração.

 

Essa minha escolha de olhar a miudeza não deve ser confundida com o “presentismo” que abordei e critiquei na crônica “Aqui, agora”. Sentir prazer nas pequenas coisas que ocorrem no cotidiano não significa deixar de observar e tentar entender os grandes acontecimentos e o modo como eles se manifestam no que é corriqueiro.

 

Com a aposentadoria e os filhos voando sozinhos, temos tempo de sobra para prestar atenção nas pequenas coisas. O genial Guimarães Rosa já sabia disso. Ele escreveu “quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.” Não ao acaso a primeira palavra do livro Grande Sertão Veredas é “nonada”, coisa alguma em lugar algum. O autor  conta coisas que parecem desimportantes, mas ele vai do quase nada ao infinito.

 

Eu estou preferindo que não aconteçam tantas coisas novas o tempo todo. O excesso disso cansa. Estou interessada em prestar atenção  no intervalo, no silêncio, nas insignificâncias. Coisa que o grande Manoel de Barros, o “poeta das desimportâncias”, já fazia mesmo antes de envelhecer. Era um “apanhador de desperdicios”.

 

Talvez estejamos muito contaminados com a ideia de que acontecimento seja apenas o que muda ou interrompe algo que já aconteceu; algo extraordinário. Mas, isso não é absolutamente  verdadeiro. Também há  “acontecimento” na rotina, na repetição, na mesmice, no vazio e no silêncio.

 

As pequenas coisas são o que temos de mais concreto, de mais essencial. Aquilo que parece banal e pequeno é onde nosso viver se funda.


Tenho desejado que as coisas miúdas insistam em mim. Que as sutilezas do cotidiano tomem meu corpo e minha alma. Quero ficar grávida de desimportâncias. Pois a vida acontece quando não acontece nada de novo.

 

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