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O mundo digital e as relações analógicas.

Por Walber Guimarães Junior, engenheiro e diretor da CIA FM.


Mesa cheia no restaurante, ou mesmo no boteco, mas o bate papo é descontínuo porque as razões do mundo contemporâneo impõem a regra da modernidade; uma espiada a cada três minutos na tela que conecta cada indivíduo ao mundo virtual.



Desde o fim das varandas lúdicas, da arquitetura do século XX, superadas pelas moradias verticais ou pelas casas sufocadas pro muros e grades, a conversa da família havia sido transferida para a mesa do jantar, porque a sala de estar exige silencio para o streaming que estreia novo título, mas nem isso se sustenta; a disposição formal de garfo e faca em lados opostos precisa enfrentar a prioridade do celular, tela para o céu para que brilhem as notificações, as regras do pai ou o conselho da mãe precisam ser dosados para não interromper o vídeo bombado do tiktok ou a sub celebridade que tenta viralizar mais um reels do cotidiano.


Parece contraditório que a mesma mecânica que aproxima pessoas distantes, como o amigo virtual do outro continente, me afasta do amigo de duas décadas porque, depois da minha agenda de postagens, não sobra tempo para uma conversa fiada.


Lutamos muito tempo por nossa privacidade, te recordo da alegria do adolescente que ganhou o seu espaço, seu quarto e sua televisão, que se sentiu dono do mundo por ter um canto onde dividia seus sonhos com raros amigos escolhidos a dedo. Mas agora não importa, preciso postar meu prato vegano, meu look diário, impensável encarar uma hora de academia sem postar para o mundo.


Viramos escravos do digital, como se a nova era nos entregasse uma tábula rasa, o histórico foi para a lixeira e só importa aquilo que se compartilha. Espere por ajustes da genética, outrora submetida às variáveis da mãe natureza e agora sob interferência intensa dos equipamentos que se equivalem a extensões de nosso corpo.


Nossos bisnetos terão dedos médios encurvados para melhor adequação ao celular, seu olhar periférico terá um ângulo reduzido porque se a televisão estava a três metros, a distância agora é de apenas trinta centímetros. Em cinco anos, a digitação será substituída pelo ditado ao IA de plantão, melhor ainda porque permitirá a manutenção da língua como a conhecemos, embora completamente “estrangeirada”.


A velha tabuada dos pesadelos de nossa infância é desnecessária porque o celular está substituindo nosso cérebro como tornou obsoleto a calculadora, a máquina fotográfica, a televisão, o scanner, a enciclopédia a tal ponto que muitos nem entendem como usar um telefone fixo!


É um caminho sem volta, como todas as inovações da humanidade que sempre nos propiciaram mais conforto e mais tempo para nossas relações, todavia a nova revolução reconstrói também as relações humanas, desde familiares às afetivas. Não tem mas os causos dos avós, assim como a paquera tradicional, com olhares e toques discretos foi substituída pela análise do perfil nos aplicativos. Tem muita gente gritando para o mundo parar, descer e esperar que a rotação devolva os pequenos prazeres que o digital sepultou.


O cidadão 3.0 do século XXI é uma aposta irreversível, mas é importante preservar intensamente a qualidade das relações pessoais, porque são essenciais para a formação do caráter, da essência do ser humano, não me parece promissor que a guerra no outro continente importe mais que a fome do ser humano da esquina.

A ilusão da vida perfeita não pode comprometer a rotina de desafios de cada ser humano, são muitos gatilhos disparados pelo descompasso entre o perfeito do digital e o real de cada dia, sorrisos na tela e conflitos offline, edição para postagens e depressão e contradições quando acaba a bateria.


Por que um pretenso analista político se preocupa com este tema? Talvez porque também na cena política a maquiagem dos fatos e dos personagens nos tenham transformados em adoradores de mitos, apaixonados pelas versões e despreocupados em descortinar a realidade.


Aqueles que “seguimos” na política, são perfeitos, editados, com camadas de filtros, photo shop extremamente profissional que os eleva a condição de sub divindades e os adversários, quando não bloqueados, precisam ser demonizados para não ofuscar o brilho dos nossos escolhidos, assim como dos nossos perfis nas redes sociais.


Sei que é o futuro, tendência irreversível, mas assim como na paquera e na conversa de varanda, é necessário ouvir o contraditório, o conselho do avô, da dica do vizinho, a opinião do amigo.


A vida real tem mão dupla, não basta postar e esperar por curtidas é fundamental reaprender a ouvir, não dá para bloquear os que pensam diferente porque a nossa aldeia é pequena demais para nos acomodar, é imprescindível entender que temos que dividir o mundo até com aqueles que pensam diferente.

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