Em 1987, assisti o encantador filme ‘Nunca te vi, sempre te amei’, que conta a história de uma troca de correspondência, durante vinte anos, entre uma escritora americana e o gerente de uma livraria especializada em edições raras e esgotadas de Londres. O filme mostra o afeto entre duas pessoas que nunca se viram, mas nutriam um profundo sentimento um pelo outro. Gostei muito do título do filme e ele ficou voando no meu cérebro até que um dia pousou.
Logo que adquiri meu primeiro carro, um velho Fusca amarelo, fiquei muito incomodada com as teias de aranha que frequentemente apareciam no porta luvas. Eu as retirava, todavia, no dia seguinte lá estavam novamente. Pouco tempo depois, a aranha expandiu seu raio de ação, tecendo fios suspensos entre o retrovisor e o volante, e deste ao banco. Quando o carro ficava alguns dias parado, ela se ocupava em ligar todas as partes internas do carro, tecendo uma verdadeira obra de arte.
Um amigo contou que as aranhas constroem as teias para capturar os animais dos quais se alimentam. Sabendo disso, parei de desmanchar as teias. Tadinha! Eu não queria que passasse fome. Algumas vezes, perdi o controle e com intenções assassinas, politicamente incorretas, procurava a impostora, mas nunca a achava. Até que ela me venceu pelo cansaço e decidi adotá-la como um pet.
Nunca estive sozinha nesse hábito. Se vocês pesquisarem na internet, vão descobrir que muita gente adota aranhas, principalmente as tarântulas. Como nunca a vi, não sei de que espécie ela era e nem se era fêmea ou macho. Gosto de pensar que era uma representante das vulgarmente conhecidas como saco-amarelo, e que foi atraída pela cor do meu fusca, para se disfarçar com mais facilidade.
A aranha tornou-se minha amiga invisível. Não imaginária, afinal, ela existia concretamente, embora eu não a visse. Desenvolvi por ela um surpreendente afeto. Todos os dias eu a cumprimentava e ela, toda ouvidos, no seu mutismo habitual, nada falava. O diálogo, quer dizer, o monólogo era intenso. Ela escutava minhas lamúrias, risadas e cantares. A amizade era tamanha que resolvi dar-lhe um nome: Mirthes. Era um tal de ‘bom dia, Mirthes’, ‘boa noite, Mirthes’, ‘você não sabe da maior, Mirthes’. De fato, nunca a vi, mas eu a amava (o título do filme pousou aqui). Meu porta-luvas era sua casa, segura e confortável. A aranha era livre e, ao mesmo tempo, estava protegida da chuva e do frio.
Com o passar do tempo, minha carreira como professora foi se consolidando, o salário melhorou e, submetida aos ditames mercadológicos, desejei comprar um carro melhor. O fusca não me satisfazia mais. Num ato impulsivo, como sempre são aqueles gerados pelo consumismo, nem pensei em Mirthes: vendi o amarelinho e, quando me dei conta, eu estava no volante de um carro um pouco mais novo, porém sem meu pet! Numa crise de saudade, cheguei a deixar farelo de pão no porta-luvas para ver se atraía uma prima ou uma amiga de Mirthes. Nenhuma apareceu. Definitivamente, nossa história estava encerrada. E sem nenhuma DR.
Numa determinada ocasião, fui comprar um presentinho barato em uma loja próxima ao espaço da antiga rodoviária de Maringá e percebi que quase todas vendiam animais de plástico, de silicone ou de resina. Uma epidemia animalesca artificial! No afã de substituir Mirthes, não tive dúvida, comprei uma aranha de silicone e alojei-a no porta-luvas do carro mais novo. No Fusca, esse local tinha atuado como um útero gerador de aranhas. Como o útero do carro novo era estéril, coloquei vida artificial numa terra inóspita.
Passei a conversar com a aranha siliconada, como nos tempos de Mirthes. Porém, fui percebendo que ela não era boa ouvinte. O simulacro nunca é a perfeita imagem do real.
Colecionei, e ainda coleciono, inúmeras aranhas, de materiais e de tamanhos diversos. Continuei a usar o nome Mirthes para as aranhas artificiais, mesmo sabendo que elas não chegam aos pés, digo, às patas, da real. Como tenho achado Mirthes muito sozinha, passei a comprar amiguinhos para ela (cobras, sapos, lagartixas, baratas…). Meu carro, assim como eu, é democrático e inclusivo.
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