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Foto do escritorIvana Veraldo

Minha corda Tereza

Coloco o café na xícara e o aroma entra pelas narinas. O calor da bebida aquece meu coração e começo a lembrar do sonho que tive. Sonhei que minha Tia Tereza, irmã da minha mãe, pedia ajuda para puxar uma corda que saía de um buraco que se abrira na sua barriga. Comecei a puxar mas a corda era interminável. Metros e metros foram se acumulando no chão. O sonho foi embora e não vimos a ponta final.

 


Tereza, além de ter sido uma corda pra mim e outras sobrinhas, tinha corda nas suas entranhas. 

 

Tereza - gosto de pronunciar seu nome -  foi uma das mulheres que me forjou. Sua vida foi atravessada por  privações de todas as espécies. Mesmo assim, ela estimulou a mim e a outras mulheres da nossa grande família a romper padrões familiares e sociais. Foi a primeira pessoa da minha família a fazer um curso superior - química. Primeira mulher da minha família a participar do movimento estudantil. Foi uma das poucas mulheres de Maringá a fazer parte de um grupo de estudantes que conquistou o fim das mensalidades nas universidades públicas do Paraná. Tereza enfrentou o machismo, usufruiu da liberdade sexual, engravidou sem casar, recebendo a pecha de mãe solteira. Foi uma professora extremamente dedicada e competente.

 

Sempre muito vaidosa, vestia-se com estilo, aproveitando sua altura, usava colares, anéis e maquiagem. Quando tinha tempo, aventurava-se na cozinha, sendo  a responsável por apresentar à família sabores e texturas desconhecidos. Aprendi muito com os dotes culinários dela.

 

Tereza foi tantas vezes uma corda pra mim. Não a corda que prende. Foi a corda que liberta.

Igual aquela corda chamada Tereza, improvisadamente  feita com lençóis amarrados e usada em tentativas de fuga de sanatórios e presídios. Ao romper barreiras, minha tia serviu de exemplo, estimulando suas sobrinhas a fazer o mesmo: estudar, trabalhar e não se submeter aos homens.

 

Sempre foi, e ainda é, apaixonada por literatura. Os livros brotam nas suas mãos. Foi com ela que aprendi que os livros não deveriam morrer na estante. Ela nos emprestava e não cobrava de volta. Eu também não ficava com eles. Depois de lidos, eles queimavam em minhas mãos e eu os emprestava para outra pessoa. Livros tem que circular! Aliás, estou escrevendo uma crônica  sobre isso. Sua companhia foi sempre muito gostosa, alegre e inteligente.

 

A vida tem seus percalços e o tempo foi fustigando seu corpo e seu coração, com 78 anos. Suas costas arcaram e ela sucumbiu às muitas tristezas da vida. Na juventude,Tereza engravidou de um sujeito que não assumiu a paternidade, como tantos outros mundo afora. Mesmo assim, ela, junto com minha avó, criou, educou e incentivou esse filho a estudar e ser  um adulto com responsabilidade afetiva. Teve força também para ser a principal cuidadora da minha avó por décadas.

 

Tereza foi uma competente professora, mas também acumulou tristezas no exercício do magistério, com suas péssimas condições e baixos salários.

 

Acho que todas as lutas lutadas deixaram seu envelhecimento um pouquinho triste, murchando sua pele e seu coração. Ela não tem mais o viço da mocidade, como é natural para todos os que percorrem tantas décadas. Hoje Tereza não é mais uma corda para mim. Hoje, é ela que precisa de uma corda para se segurar. Apego-me às memórias do vivido e a abraço, presencialmente e à distância. Afino meus ouvidos para escutar suas histórias. Gosto de lembrar dela, moça “descolada” dizendo “Ivana, não desista dos seus sonhos”. É dessa Tereza, minha madrinha, que minha memória é preenchida. Agradeço por ter sido uma corda que me permitiu voar e ser quem eu sou hoje.

 

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