Como falei no outro artigo a fé cristã não pode ser meramente declarativa; deve ser demonstrada através de ações concretas que aliviem o sofrimento humano. Algumas vezes são tomadas ações concretas, porém, estas ações são uma falácia da caridade condicional, onde a ajuda é oferecida apenas quando é conveniente ou para ganho próprio, e é uma forma de hipocrisia que contraria os ensinamentos de Jesus. A verdadeira justiça econômica e social exige que as nações ricas implementem políticas que promovam a equidade e o bem-estar global, sem condições ou interesses ocultos.
A abundância de recursos no mundo ocidental traz consigo uma grande responsabilidade: a de compartilhar esses recursos de maneira justa e generosa. O chamado cristão é para que cada nação e cada indivíduo reconheçam sua responsabilidade diante de Deus e atuem em favor dos necessitados, promovendo a justiça social não apenas como um ideal, mas como uma prática viva e transformadora.
Diante de uma situação de extrema pobreza (esta e tantas outras) como da Namíbia que propõe matar pelo menos 80 elefantes para alimentar uma população faminta. cabe uma pergunta: Por que, como cristãos ocidentais, tendemos a enxergar esses povos como selvagens e bárbaros, e de que maneira apaziguamos nossa consciência diante dessa percepção e diante destas necessidades?
Essa questão toca em uma das contradições mais profundas da prática cristã no contexto ocidental: a dissonância entre os valores proclamados pelo cristianismo e as atitudes e comportamentos em relação a outros povos, especialmente aqueles que vivem em condições de extrema pobreza ou marginalização. Para entender essa dissonância, podemos explorar dois aspectos principais: a construção histórica e cultural do "outro" como bárbaro ou selvagem, e os mecanismos psicológicos e teológicos que usamos para apaziguar nossa consciência.
1. Construção histórica e cultural do "outro"
Historicamente, o ocidente, influenciado por uma longa tradição de imperialismo e colonialismo, construiu a imagem do "outro" — aqueles que não pertencem à cultura ocidental — como sendo bárbaro, selvagem e inferior. Essa construção não surgiu no vácuo, mas foi fortemente influenciada por uma combinação de fatores econômicos, políticos e teológicos que visavam justificar a exploração e a dominação de outros povos.
Na era do colonialismo, a ideia de que as nações europeias tinham a "missão civilizatória" de trazer luz aos "povos selvagens" foi utilizada para justificar a conquista e a exploração de terras e recursos. Esse discurso foi muitas vezes revestido de linguagem cristã, apresentando a colonização como um ato de benevolência e de cumprimento do mandato de "ir e fazer discípulos de todas as nações" (Mateus 28:19). No entanto, essa missão foi frequentemente distorcida para servir a interesses de poder e dominação, em vez de refletir os verdadeiros ensinamentos de Cristo sobre amor ao próximo e igualdade diante de Deus.
Essa construção cultural do "outro" como bárbaro e selvagem ainda persiste de maneira sutil nas atitudes e percepções ocidentais contemporâneas. Mesmo sem a intenção consciente, os estereótipos que associam a pobreza e as práticas de sobrevivência em regiões marginalizadas com selvageria ou atraso cultural continuam a influenciar a maneira como muitos cristãos ocidentais veem essas populações. Isso cria uma divisão mental entre "nós", os civilizados, e "eles", os primitivos, que pode levar à desumanização e ao distanciamento emocional.
2. Mecanismos de apaziguamento da consciência
Para lidar com a dissonância entre os ensinamentos cristãos de amor e justiça e a maneira como tratamos esses povos, os cristãos ocidentais frequentemente recorrem a mecanismos psicológicos e teológicos que permitem apaziguar a consciência e evitar o confronto direto com essa contradição.
a) Recalque e projeção
Conforme exposto pela minha esposa, Psicóloga Auriciene em seu artigo (colocar aqui o link do artigo) Freud nos oferece uma compreensão sobre como os indivíduos e as sociedades lidam com conflitos internos através de mecanismos de defesa como o recalque e a projeção. O recalque nos permite ignorar ou suprimir a culpa e a responsabilidade que sentimos ao testemunhar a miséria e a pobreza extrema. Assim, ao invés de confrontar nossa própria participação nas injustiças globais, recalcamos essa culpa e projetamos o problema nos próprios povos afetados, vendo-os como responsáveis por sua própria condição.
A projeção é um mecanismo pelo qual atribuímos a outros os impulsos ou características que não podemos aceitar em nós mesmos. Nesse caso, os cristãos ocidentais podem projetar nos povos marginalizados a "barbárie" e a "selvageria", características que o ocidente reprimiu ou deslocou ao longo de sua história. Ao fazer isso, apaziguamos nossa consciência, mantendo a ilusão de que o problema reside nos outros, e não em nossa própria sociedade ou em nossas políticas globais.
b) Teologia da prosperidade e meritocracia
Outro mecanismo utilizado para apaziguar a consciência é a teologia da prosperidade, que muitas vezes associa a bênção divina com riqueza material e sucesso. Segundo essa perspectiva, a pobreza pode ser vista como um sinal de falta de fé, disciplina ou maldição. Isso leva a uma visão meritocrática do mundo, onde aqueles que estão em condições de miséria são vistos como de alguma forma responsáveis por sua situação, enquanto os abastados são vistos como abençoados por Deus.
Essa interpretação distorcida do evangelho permite que os cristãos ocidentais justifiquem sua própria riqueza e ignorem as injustiças estruturais que perpetuam a pobreza global. A culpa é deslocada dos sistemas de opressão para os próprios indivíduos ou culturas, criando uma narrativa conveniente que apazigua a consciência sem exigir mudanças reais nas atitudes ou ações.
c) Distanciamento emocional e desumanização
Finalmente, o distanciamento emocional é uma forma comum de lidar com a dissonância entre os valores cristãos e a realidade do sofrimento humano. Ao ver os povos marginalizados como "outros" distantes e fundamentalmente diferentes, podemos desumanizá-los e, assim, minimizar a nossa empatia e a sensação de responsabilidade. Essa desumanização pode ser reforçada pela linguagem e pelas imagens que retratam esses povos de maneira estereotipada, como selvagens ou bárbaros, o que cria uma barreira que nos permite evitar o confronto com a realidade de seu sofrimento.
A forma como os cristãos ocidentais tratam os povos marginalizados como selvagens ou bárbaros é um reflexo de uma complexa rede de influências históricas, culturais, teológicas e psicológicas. Esses mecanismos de apaziguamento da consciência nos permitem manter uma imagem de nós mesmos como civilizados e justos, ao mesmo tempo em que perpetuamos ou ignoramos as injustiças globais.
No entanto, o verdadeiro chamado cristão é para que rompamos com essas ilusões e confrontemos a realidade do sofrimento humano com a compaixão, a justiça e a humildade ensinadas por Cristo. Isso exige que revisitemos nossas atitudes, desconstruamos os estereótipos e nos envolvamos de maneira significativa e solidária com aqueles que vivem em condições de extrema necessidade, reconhecendo a plena dignidade de cada ser humano como imagem de Deus.
Que Deus tenha misericórdia de nós!!!
Leia aqui: Parte 1 deste artigo
Vale a pena ler:
Pr. Gedeon Lidório
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