Espiritualidade: uma teologia para a esperança
- Gedeon Lidório
- 25 de fev.
- 4 min de leitura
Não eram mais que dez horas da noite; estava frio, ventava e o escuro fazia o fogo que crepitava na fogueira no meio da mata ficar ainda mais vivo. Lembro-me bem desta fogueira, numa mata, ao sul de Minas Gerais em um acampamento de estudantes de teologia; estava sozinho olhando a fogueira e pensando em como o fogo queimava e consumia a madeira, nas vidas que aquecia e na escuridão que iluminava.

Aquela cena de fogo vivo, que consome a madeira e ilumina a escuridão, remete ao anseio de homens e mulheres em buscar justiça, amor e santidade em um mundo marcado pela incerteza. Esse anseio profundo, no contexto do cristianismo, encontra eco na missão deixada por Jesus: “Sereis minhas testemunhas [...] até aos confins da terra” (Atos 1.8). Entretanto, ao olharmos para a religiosidade evangélica brasileira atual, somos levados a refletir sobre como a espiritualidade, muitas vezes, tem sido distorcida por práticas individualistas e hedonistas, distantes do propósito maior de viver e anunciar o Reino de Deus.
No cenário evangélico brasileiro, percebe-se um forte contraste entre o ideal bíblico de “morrer para si mesmo” (cf. Gálatas 2.20) e a busca incessante por realização pessoal, prosperidade e felicidade instantânea. Aqueles que deveriam ter a vontade de Cristo acima de tudo, muitas vezes veem na própria vontade o critério final de verdade. Nessa perspectiva, a justiça torna-se algo subjetivo, servindo apenas aos anseios individuais. A família, os bens, a saúde e até mesmo o relacionamento com Deus podem ser vistos como meros acessórios para satisfazer desejos egoístas.
Esse contexto gera uma espécie de relativismo espiritual, em que cada um constrói a sua própria “verdade” e justifica erros e frustrações pessoais criando “bodes expiatórios”. A comunhão cristã, que deveria ser marcada pela partilha e pelo cuidado mútuo, por vezes, se fragmenta diante de disputas de poder e vaidades. Assim, a busca pelo Reino de Deus torna-se secundária, e a experiência de fé, cada vez mais rasa.
O tema da espiritualidade tende a ser negligenciado por muitos que se envolvem em práticas “espiritualizadas” meramente emocionais ou ascéticas, sem uma raiz teológica consistente. Para uns, espiritualidade é sinônimo de êxtase e viagens místicas, retirando os pés do chão e ignorando as realidades concretas da vida. Para outros, é fruto de sacrifícios extremos, de negações e até de autoflagelo, transformando a fé em medo e legalismo.
Esse distanciamento entre teologia e espiritualidade foi intensificado, segundo alguns estudiosos, a partir de Tomás de Aquino, no final da Idade Média. Ele propôs uma separação entre o conhecimento intelectual (teologia como ciência) e o relacionamento íntimo com Deus (espiritualidade). Assim, forjou-se a ideia de que a teologia estaria restrita a uma função meramente racional e acadêmica, desprovida de poder transformador. Consequentemente, criou-se um abismo entre o estudo sistemático das Escrituras e a vivência pessoal do Evangelho. A pergunta que surge, então, é: como reconstruir uma espiritualidade sadia que dialogue e se alimente de uma teologia igualmente comprometida com a vida e o amor de Deus?
Uma espiritualidade integral não descarta o conhecimento teológico, mas, ao contrário, o utiliza como alicerce para uma fé lúcida e engajada. O caminho para resgatar a verdadeira essência cristã demanda muitas decisões e alargamentos de mente, mas vou sugerir alguns pequenos passos, para quem sabe, despertar alguns:
Redescobrir a centralidade de Cristo
Antes de qualquer coisa, a espiritualidade cristã tem em Jesus o fundamento da fé. Seu exemplo de serviço, compaixão e entrega é o modelo a ser seguido. Quando o discípulo entende que Cristo é o centro, a vontade pessoal cede espaço à vontade de Deus, e as prioridades mudam.
Unir cabeça e coração
O estudo teológico deve conduzir a uma experiência transformadora. A reflexão sobre a Palavra de Deus não pode permanecer no campo da abstração: ela precisa gerar frutos de amor, serviço e esperança. Assim, a ortodoxia (aquilo que cremos) e a ortopraxia (o que praticamos) caminham juntas.
Viver a comunhão e a missão
A espiritualidade cristã não se desenvolve no isolamento, mas no relacionamento com Deus e com o próximo. A igreja local, quando madura, torna-se lugar de partilha de dores, alegrias, recursos e dons. Além disso, a missão transcende as paredes do templo, pois, como Jesus instruiu, o testemunho cristão deve alcançar “até aos confins da terra” (Atos 1.8).
Valorizar a verdade e a justiça
Em um contexto de relativismo, a verdade bíblica precisa ser afirmada com humildade e firmeza. A justiça do Reino não é aquela moldada pelos interesses individuais, mas pela ética do amor, do perdão e da reconciliação. Nessa perspectiva, a espiritualidade inspira o cristão a agir em defesa da vida, da dignidade humana e da restauração de relacionamentos rompidos.
A lembrança daquela fogueira, que brilhava solitária na mata, aponta para a necessidade de reacender em nosso coração uma fé autêntica e comprometida. O calor do fogo que ilumina e aquece é o mesmo que pode inflamar uma igreja inteira, despertando homens e mulheres para o verdadeiro sentido do Evangelho: amar a Deus acima de tudo e ao próximo como a si mesmo (Mateus 22.37–39).
Diante de uma sociedade cada vez mais individualista, consumista e marcada pelo “eu”, a espiritualidade cristã precisa recuperar sua força profética e sua essência transformadora. Com a teologia junto com a espiritualidade, abandonamos uma compreensão estéril e intelectualizada da fé, bem como um misticismo exagerado e desconectado da realidade. Assim, a igreja se fortalece, voltando a ser sal e luz em um mundo que anseia por esperança.
A reconciliação entre pensamento teológico sólido e vida espiritual viva é o grande desafio do nosso tempo. Esse processo exige humildade, coragem e amor, para que possamos ser, de fato, “testemunhas” fiéis, tanto em nossa “Jerusalém” pessoal quanto “até aos confins da terra”. Somente assim a fé deixa de ser um acessório para se tornar a rocha firme onde construímos toda a nossa existência, refletindo a vontade e o caráter de Cristo em nosso viver diário.
Pr. Gedeon Lidório
Instagram: @gedeonlidorio
E-mail: gedeon@lidorio.com.br
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