Célio Juvenal Costa, professor da UEM
“Dê 100 milhões de dólares a uma pessoa e faça dela um bilionário frustrado”. Esta frase foi dita por uma personagem secundária do filme Assédio Sexual (1994). O filme foi um sucesso de bilheteria, não pela frase, mas pela temática e discussão sobre assédio nas empresas por parte de superiores hierárquicos. Se fosse hoje o valor seria algo em torno de 250 milhões de dólares, ou 1 bilhão e quinhentos milhões de reais. Mas, porque esta frase ficou retida na minha memória? Creio que ela sintetiza muito do que a nossa sociedade vive. É o que vou tentar mostrar a seguir.
A ideia da frase acima é que, ao contrário do que as pessoas podem ser levadas a pensar, os milhões de dólares não farão da pessoa um milionário realizado e, portanto, feliz. Se uma pessoa passa a contar com tamanha quantidade de dinheiro, ela pode realizar, obviamente, muitos desejos que até então não podia realizar, como, por exemplo, ter uma Ferrari, apartamentos em mais de uma cidade, viagens para diversos lugares, iate e até um jatinho particular. Portanto, seria de se esperar, como apontado acima, que ela se sentiria completa. No entanto, quanto mais dinheiro a pessoa passa a possuir, ela tem contato com outras coisas, que levam a outros desejos, como, por exemplo, um iate maior, um jatinho maior, uma mansão em um lugar onde ela não tem, enfim, coisas que o dinheiro dela não pode comprar. E isto leva, necessariamente, à frustração de não poder realizar os novos desejos e, portanto, por mais que ela tenha milhões de dólares, ela não é feliz, ela é um bilionário frustrado. Esta é a profunda sabedoria da frase do filme.
Mas, esta lógica não se aplica somente a milionários desiludidos. Ela se aplica a toda a sociedade, mesmo a nós que temos que nos virar com o nosso salário. A lógica é da sociedade de consumo, é a lógica do capitalismo. Ela funciona mais ou menos assim: eu compro algo novo, um celular por exemplo, mas logo a empresa lança outro modelo mais novo e o meu passa, por consequência, a ser considerado velho; logo, eu passo a ter uma espécie de carência, um vazio, que precisa ser preenchido pelo aparelho novo, que se tornou meu novo desejo; quando finalmente adquiro o modelo novo, a roda começa a girar novamente. Tal lógica também se aplica a desejos, ainda no exemplo do celular, de ter um aparelho de outra marca, mais cara, mais valorizada no mercado. A lógica do consumo conta com dois mecanismos que são profundamente psicológicos, pois ligados a sentimentos: a carência e a frustração, a primeira gera o desejo e segunda não se contenta com a aquisição do desejado. O nível do consumo na atualidade chega às raias da loucura, pois a diversidade de marcas, modelos, tipos, aumenta em uma velocidade que há dezenas de anos era inimaginável. A obsolescência hoje é cotidiana, e mais, é programada. Uma sociedade radicalmente consumista requer que as pessoas tenham cotidianamente desejos e, portanto, requer que as pessoas sejam, sempre, carentes e frustradas.
E isso não se aplica somente a coisas materiais. Esta lógica da carência, desejo e frustração, está presente, também, nos relacionamentos. Como já disse um velho barbudo do século XIX que conhecia muito bem a sociedade, no capitalismo tudo se transforma em mercadoria, mesmo os sentimentos e os relacionamentos. A busca atual pela perfeição dos corpos, seja por meio de academias, anabolizantes, procedimentos estéticos, revela a lógica do consumo: produtos melhores, mais atrativos, têm mais chance de ser consumidos no mercado dos relacionamentos; o problema é que, assim como nas coisas materiais, o novo produto desbanca o velho, a carência mobiliza um novo desejo, que, ao ser satisfeito, logo gera frustração.
A compreensão desta lógica consumista pode esclarecer porque temos notícias de pessoas que ficaram famosas, ganharam muito dinheiro e seguidores, e entram em depressão. É muita ingenuidade achar que pessoas como Musk, Bezos e Zucherberg são plenamente realizados e felizes. As centenas de bilhões de dólares que eles têm geram as suas frustrações, nem que seja a de que ainda não se tornaram trilionários; e, quando se tornarem, dentro em breve aliás, virão outras carências, outros desejos e, portanto, outras frustrações.
Como fazer para não se deixar levar por esta lógica? Infelizmente não tenho resposta fácil para isto, pois se eu tivesse provavelmente já teria virado coach (kkkk). Mas, creio que o primeiro passo é ter consciência deste mecanismo e perceber que o consumismo nada mais é do que uma máquina mental, psicológica, que nos faz paralisarmos perante a vida. Talvez, a partir daí, possamos movimentarmo-nos de verdade, com nossas carências, desejos e frustrações num nível de autoconsciência para vivermos nossa individualidade e nos relacionarmos humanamente e não como meras mercadorias.
PS: me permitam contar uma história recente e pessoal. Eu uso um tipo de shampoo há mais de 20 anos e que nos últimos tempos desapareceu das prateleiras dos supermercados e farmácias. Na cidade em que minha mãe mora, Campo Largo, ao lado de Curitiba, eu perguntei para uma atendente de farmácia porque não tinha mais do shampoo. Ela me sugeriu ir a uma farmácia de bairro onde eu talvez encontraria, pois lá eles trabalham com produtos que estavam saindo de linha. Eu, que já estava preocupado que meu shampoo tivesse saído do mercado por causas sanitárias, fiquei tranquilo que ele só ficou obsoleto mesmo...
Meu Instagram: @costajuvenalcelio
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