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Civilização e barbarismo: o perverso jogo de poder e a psicologia da sobrevivência

Na contemporaneidade, as discussões políticas e econômicas globais frequentemente se distanciam das realidades brutais enfrentadas por populações marginalizadas em regiões devastadas pela fome e pela guerra. Enquanto nações desenvolvidas debatem sobre guerras, comércio de armamentos e a economia global, muitos são forçados a práticas de sobrevivência que são vistas como "selvagens" por eles que as impõem, como é o caso específico da Namíbia (África) que vive uma crise de seca sem precedentes e deve abater mais de 80 elefantes para alimentar população.

 


O que podemos pensar nos efeitos em uma população de um destes países a partir de um contexto desse? Olhamos para eles (populações nativas africanas) como “selvagens”, “primitivos” e nos designamos como “civilizados”, “avançados”, porque não temos tais práticas ou necessidades.

 

Sigmund Freud, em sua obra "O Mal-estar na Civilização" (1930), argumenta que a repressão de instintos primitivos é fundamental para a manutenção da civilização, mas essa repressão também gera um profundo mal-estar psíquico. A civilização, ao impor normas que restringem a expressão dos impulsos mais básicos do ser humano, cria um ambiente de constante tensão entre o desejo individual e as exigências sociais. Essa tensão, segundo Freud, é uma das causas principais do mal-estar que permeia a vida moderna.

 

No contexto das relações internacionais e das dinâmicas de poder global, essa repressão se manifesta na forma de uma divisão entre o que é considerado "civilizado" e "primitivo". O ocidente, ao se autodenominar como civilizado, projeta o que é visto como primitivo em outras culturas, especialmente nas africanas. Essa projeção é uma forma de preservar a própria imagem de superioridade moral e cultural, ao mesmo tempo em que permite a imposição de práticas de sobrevivência bárbaras a essas populações, como o consumo de carne de animais selvagens em situações de extrema necessidade.

 

A perversão pode assumir múltiplas formas, o que nos ajuda a entender essa dinâmica. O que é visto como perverso ou bárbaro em uma cultura pode ser normalizado ou até imposto a outras como uma forma de controle e dominação. Nesse sentido, as políticas econômicas e de poder global que forçam populações a adotar práticas de sobrevivência selvagens são uma manifestação dessa perversão polimórfica, mascarada por uma fachada de civilidade.

 

A naturalização do selvagem, entendida aqui como a aceitação tácita de que certas populações devam viver em condições de sobrevivência extrema, é um dos subprodutos mais insidiosos da civilização moderna. No entanto, essa naturalização não ocorre de forma passiva; ela é ativamente construída e mantida através de mecanismos psíquicos como o recalque e a projeção.

 

Freud descreve o recalque como um processo pelo qual pensamentos ou desejos inaceitáveis são mantidos fora da consciência. No caso das sociedades ocidentais, o recalque é utilizado para afastar a culpa e a responsabilidade pelas condições de vida em regiões marginalizadas. Ao relegar a brutalidade da sobrevivência a um "outro" primitivo, as sociedades ocidentais conseguem manter sua autoimagem de civilidade intacta, negando sua própria cumplicidade na criação e manutenção dessas condições.

 

Esse recalque coletivo é complementado pela projeção, um mecanismo pelo qual os próprios impulsos ou desejos inaceitáveis são atribuídos a outros. Assim, a violência e a brutalidade da sobrevivência nas favelas, nas cidades marginalizadas e na África são vistas como características intrínsecas dessas populações, enquanto o ocidente permanece imaculado, incapaz de reconhecer que suas políticas econômicas e militares contribuem diretamente para essa situação.

 

Além disso, o povo afetado por essas condições, ao internalizar as práticas de sobrevivência brutais como uma norma, acaba por reforçar a naturalização do selvagem. A aceitação da luta pela sobrevivência como uma condição inevitável é um exemplo do que Freud descreveu como a "morte da alma", onde o indivíduo, ou a coletividade, se resigna à condição imposta, renunciando a qualquer aspiração a algo além da mera sobrevivência.

 

Ao impor essas condições às populações marginalizadas, a civilização ocidental não só revela suas próprias contradições internas, mas também seu lado perverso. Freud, ao discutir o conceito de civilização, destacou que a repressão necessária para a vida em sociedade não elimina os impulsos destrutivos; ao contrário, ela os desloca e os reconfigura, muitas vezes em formas que são ainda mais destrutivas e insidiosas.

 

A imposição de práticas de sobrevivência bárbaras, como comer carne de animais selvagens, como única forma de sobrevivência é um exemplo claro dessa perversão civilizatória. O ocidente, ao negar sua própria barbárie, impõe a outros povos as condições que ele próprio considera inaceitáveis, criando uma dissonância moral que só pode ser sustentada através da repressão e da projeção.

 

Esse paradoxo da moralidade é uma das principais fontes do mal-estar na civilização. A civilização, ao tentar suprimir seus impulsos mais primitivos, acaba por projetá-los em outros, criando um ciclo de violência e repressão que perpetua o sofrimento tanto dos dominadores quanto dos dominados.

 

O mal-estar na civilização, conforme descrito por Freud, não se limita ao indivíduo; ele é um fenômeno coletivo que permeia as estruturas sociais e políticas globais. A naturalização do selvagem, a repressão dos impulsos primitivos e a projeção da barbárie em outros povos são manifestações desse mal-estar, que se perpetua através de um ciclo de repressão e violência.

 

Podemos nos perguntar: será que é realmente a única possibilidade nós (ocidentais) relegarmos os povos que denominamos de “selvagens” ou “primitivos” à sua própria sorte?

 

Freud nos ensina que muitos de nossos comportamentos, tanto individuais quanto coletivos, são movidos por desejos inconscientes que nem sempre correspondem aos valores ou ideais conscientes que professamos. No contexto global, a retenção de recursos por nações ricas pode ser vista como uma manifestação desse desejo inconsciente de poder e controle. Embora existam recursos financeiros suficientes no mundo para aliviar significativamente a pobreza e as condições de miséria, a distribuição desigual desses recursos revela um desejo de manter o status quo, onde alguns possuem e controlam muito enquanto outros têm pouco ou nada.

 

Esse desejo de controle está intimamente ligado ao conceito freudiano de Thanatos (instinto de morte), que se manifesta na destruição, na guerra e na exploração. As nações que detêm a maior parte dos recursos econômicos podem, inconscientemente, temer perder sua posição dominante no cenário global, o que as leva a reter recursos que poderiam ser usados para o bem comum. Essa retenção é, em essência, uma forma de preservar a "superioridade" civilizatória, mesmo que às custas da vida e do bem-estar de outros povos.

 

O recalque é um mecanismo de defesa que opera tanto no nível individual quanto no coletivo, permitindo que as sociedades ignorem ou neguem responsabilidades que, se reconhecidas, poderiam gerar um profundo mal-estar. O recalque coletivo do ocidente em relação à pobreza extrema e à fome em outras partes do mundo é um exemplo claro disso. Mesmo diante da abundância de recursos, as nações ricas frequentemente preferem investir em armamentos, guerras e políticas econômicas que perpetuam a desigualdade, em vez de alocar esses recursos para combater as causas da miséria global.

 

Esse recalque é acompanhado por um discurso falacioso que, sob a aparência de civilidade e boa vontade, perpetua a ideia de que o "mundo primitivo" e "selvagem" é responsável por sua própria condição. Essa narrativa serve para proteger o ocidente da culpa e da responsabilidade, mantendo a ilusão de que as nações ricas estão fazendo o máximo que podem, quando na realidade poderiam fazer muito mais.

 

Freud sugere que, através da projeção, atribuímos aos outros impulsos ou características que não podemos aceitar em nós mesmos. No contexto global, o ocidente projeta nos países pobres e em desenvolvimento a "barbárie" e o "selvagismo", características que a própria civilização ocidental tem reprimido ou deslocado. Essa projeção permite que as nações ricas mantenham uma imagem de superioridade moral, enquanto evitam confrontar a verdade de que suas políticas econômicas e práticas coloniais contribuíram diretamente para as condições que agora veem como "selvagens".

 

Assim, o mundo ocidental não apenas possui os recursos necessários para ajudar financeiramente e economicamente os países em necessidade, mas também detém uma responsabilidade histórica e moral de fazê-lo. No entanto, essa ajuda deve ir além das promessas falaciosas e discursos vazios. Deve ser uma prática real, consciente e comprometida, que reconheça as complexidades da situação e enfrente as causas estruturais da pobreza e da desigualdade.

 

Vale a pena ler:

  

Psicóloga Auriciene Lidório

Registro: CRP 08/20137 - CNES: 4598431

Whatsapp: (43) 98823 2903

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