As caras azedas dos presidentes Javier Milei e Lula (PT) durante encontro na cúpula do G20 no Rio de Janeiro e o eco de um discurso do argentino, quando ainda candidato, de que romperia relações com Brasília refletem somente um lado da relação Brasil-Argentina no primeiro ano do ultraliberal no poder.
Aos atritos se somou um trabalho de (muito) pragmatismo. Às margens das rusgas presidenciais, diplomatas dos dois lados trabalharam para manter os laços comerciais, e houve até espaço para colaboração, em um demonstrativo de que a realpolitik ainda dá as caras.
O Brasil é o principal parceiro comercial argentino, seguido por China, Estados Unidos e Chile. O país representa cerca de 17% das exportações argentinas, além de 24% das importações. Uma balança comercial, afinal, impossível de negligenciar, ainda que também ela tenha sentido os efeitos da nova administração da Casa Rosada.
Enquanto no ano passado as exportações do Brasil para a Argentina tiveram alta de 9% em relação ao ano anterior, neste ano, entre janeiro e novembro, houve recuo de 21,4%.
A bem da verdade, o comércio bilateral vem refluindo desde 2014, e alavancá-lo era um dos objetivos do governo Lula 3. O desafio é a contraparte argentina que, frente à crise econômica crônica, implementou um ajuste fiscal rígido com corte de gastos públicos.
Neste sentido o gás natural extraído da rica formação geológica conhecida como Vaca Muerta seria peça importante. Pese o mal-estar entre Lula e Milei, os dois países firmaram em novembro um há muito gestado memorando de entendimento para exportar o gás argentino para o Brasil.
Quando isso vai ocorrer é outra história. Há um desafio logístico: como exportar o gás? A capacidade exportadora argentina, em grande parte, depende da Bolívia, seu vizinho ao norte. O país andino tem toda uma estrutura de escoamento disponível para uso agora que viu suas próprias reservas do produto minguarem.
Mas além do alto preço, há o custo diplomático: Milei já acusou o presidente boliviano, Luis Arce, de tentar um autogolpe.
Ao sair de um encontro com Lula em Montevidéu na semana passada, Arce disse, questionado pela reportagem, que a "Bolívia está totalmente disposta a ajudar nessa tarefa". "A infraestrutura está pronta para ser utilizada, não vemos muito problema na relação política, são detalhes que faltam consensuar entre as petroleiras."
Haveria ainda outras duas opções para levar o gás. Uma, transformá-lo em gás natural liquefeito e levá-lo por barco. Outra, ampliar a rede de dutos argentina para fazer com que o produto chegasse até o sul do Brasil. Novamente, o empecilho: o governo, que interrompeu obras públicas, já sacramentou que não dará nenhum novo investimento estatal no projeto, de modo que ampliar a infraestrutura teria de ficar a cargo do apetite do setor privado. Nenhuma solução será rápida.
É no campo energético que veio outro demonstrativo de pragmatismo na relação bilateral. Em maio, um navio com gás da Petrobras desviou seu curso, atracou em um porto no rio Paraná e, depois de uma gestão célere entre os diplomatas dos dois países, mitigou uma crise no abastecimento de energia na Argentina.
De lá para cá, porém, um personagem central dessas tratativas saiu de cena. A economista Diana Mondino, ex-chanceler da Argentina, tinha relação próxima com o embaixador brasileiro no país, Julio Bitelli, uma escolha a dedo de Lula para o cargo por já ter ampla experiência na Argentina. Os dois se falavam por mensagem e estavam em rápido contato cada vez que um novo tema entre os países surgiam. Até que...
Por pressão da ala ideológica da Casa Rosada, comandada por Karina, irmã de Milei, Mondino foi retirada do cargo em outubro. Em seu lugar, assumiu Gerardo Werthein, ex-embaixador nos EUA. Ele disse ao chefe da delegação brasileira: "As relações com o Brasil seguem." Mas ali foi preciso recomeçar do zero todo um trabalho de articulação.
A saída de Mondino complicou consideravelmente a condução na agenda bilateral, segundo interlocutores de Brasília. O diálogo também refluiu -nas palavras de um diplomata, a agilidade na condução da agenda bilateral se complicou consideravelmente.
Talvez esteja na Venezuela um dos principais exemplos da mudança. Em outro exemplo de colaboração a despeito do atrito, coube ao Brasil cuidar dos interesses argentinos e do prédio da embaixada do país em Caracas após a equipe diplomática de Milei ser expulsa pelo ditador Nicolás Maduro.
Pese a discordância brasileira com a postura dos seis asilados políticos da oposição que ali vivem (eles seguem fazendo campanha política, a despeito de o asilo político prever o abandono das atividades do tipo), o Brasil segue a cargo do prédio em um momento no qual, novamente, a ditadura elevou a pressão.
Já há duas semanas agentes do regime cercam a embaixada argentina em Caracas. E neste período, porém, não há contato entre as equipes diplomáticas de Brasil e Argentina.
Milei já deixou correligionários com frio na barriga na Argentina ao ir ao Brasil para um evento conservador ao lado de Jair Bolsonaro (PL). Aliados temiam que, em território brasileiro, o presidente criticasse Lula. Alguns tentaram colocar panos quentes. Milei não citou Lula, ao menos não nominalmente. Uma semana depois, porém, o embaixador Bitelli foi chamado a Brasília para conversas sobre a relação bilateral.
Na Argentina também vivem dezenas de foragidos do 8 de Janeiro que pedem refúgio no país. Cinco deles já foram presos após ordem judicial seguindo pedidos de extradição do Brasil. O governo argentino outrora prometeu não interferir e apenas seguir as decisões judiciais sobre o tema. Mas a decisão final caberá a Milei.
Resta saber se, quando esse momento chegar, prevalecerá também o pragmatismo que, a duras penas, até aqui tem regido o jogo.
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