Por Walber Guimarães Junior, engenheiro e diretor da CIA FM.
Não posso me calar depois do excelente filme dirigido por Walter Salles e com atuação brilhante da Fernanda Torres que, muito mais que alimentar a esperança do Oscar brasileiro, me fez reviver memórias difusas, como deve ter ocorrido com milhares de brasileiros que, de alguma forma estiveram próximo das histórias do arbítrio e das torturas do golpe militar de 64.
Sou filho de um político do velho MDB, com forte militância entre as década de 60 e 80 , inclusive exercendo com honra vários mandatos eletivos, inclusive em Brasília entre 74 e 86, iniciando ainda na fase dura do regime, com desfecho na eleição de Tancredo Neves, marco simbólico da Nova República e da redemocratização do Brasil, e esta vivência me colocou, por diversas vezes, como expectador privilegiado de muitas histórias que as resgato, sem pretensão cronológica.
A lembrança mais remota é uma cena muito forte, a data era o início de abril de 64, eu tinha quatro anos, e, em plena madrugada, o delegado de Maringá, Coronel Haroldo, acorda meu pai para uma questão emergencial. Logo cedo ele deveria prender o meu tio Antônio Menezes, bancário, secretário do Sindicato da classe, com forte vínculo com a Igreja Católica, mas, por ironia, não excluído da lista de “comunistas” que, anos depois, eu soube que foi apresentada preliminarmente às autoridades eclesiásticas locais que se omitiram por razões que jamais pude entender.
Pois foi exatamente o algoz que se transformou em herói. Em um velho Jeep Willys do meu pai, o delegado levou meu tio até a divisa de estado onde um amigo, também policial de Presidente Prudente, o resgatou e levou para a Rodoviária onde meu tio fugiu para Minas, terra da sua família. É minha primeira memória da “gloriosa revolução”.
Seguiram-se muitas outras memórias difusas de “comunistas” denunciados, muitos deles com boa relação de amizade com minha família, como o Dr. Salim, médico querido que atendia a Madeireira Phillips, o Ildeu Manso, o Laércio Souto e tantos outros que não sou capaz de recordar, mas pude observar amigos se mobilizando para garantir o conforto e a sobrevivência das famílias. Asseguro que nenhum deles jamais pegou em armas ou representava perigo ao regime, exceto por acreditarem na liberdade política e de expressão.
Ainda morando em uma casa onde hoje é o Shopping Mandacaru, lembro de uma inspeção de alguns amigos, dos quais me recordo do Padre Bernardo, checando a biblioteca da minha casa porque ali havia alguns exemplares do Grupo Lebret que mantinha a rotina de rodar os raros livros que chegavam até Maringá. A temática eram os ideais da Revolução Francesa, liberdade, igualdade e fraternidade, talvez porque na mente obtusa dos militares é possível que a “igualdade” remetesse ao socialismo.
Já mais consciente da situação, lembro a tensão da “visita” que meu pai teve que fazer ao Batalhão de Apucarana para um depoimento onde enfrentava a denúncia de um colega vereador, legislatura 68/72, que o acusou de ser comunista, acho que em 1970. Espera angustiante que, felizmente, se encerrou no mesmo dia.
Revejo a tensão dos comícios de 1974 de meu pai, em campanha para deputado quando os informantes dos militares nem mesmo se preocupavam em ocultar os gravadores para levar os pronunciamentos dos emedebistas, muito deles disponíveis depois na liberação dos arquivos do Dops. Era tão comum que, por muitas vezes, meu pai inicia o discurso pedindo paciência aos presentes para que os dedo duros ligassem os gravadores.
Os detalhes de bastidores da CPI da Corrupção original, entre 77 e 79, onde, sem uma vírgula na imprensa amordaçada, testemunhei a mão pesada da ditadura por diversas vezes, sendo a mais eloquente na Rua Indaiá, no Mandacaru, quando um fusca velho de tocaia na esquina foi identificado por um vizinho atento. Avisado, meu pai saiu de boné com as roupas do Polaco, filho do Zuca e seu motorista, voltando meia hora depois com viaturas do Quarto Batalhão apreendendo dois capangas, armados de fuzis, que, a seguir, afirmaram estar a mando de um general chefe dos Correios, um dos denunciados pela CPI, depoimento obviamente ignorado pelas autoridades.
Ainda nesta CPI, vi o brilhante deputado Hélio Duque chorar copiosamente por uma tentativa de sequestro de sua filhinha de sete anos, muito mais um aviso, que os levou, Hélio e Walber, até o gabinete de Aureliano Chaves, vice-presidente, para negociar uma rendição, difícil usar esta palavra porque soa cruel contra a coragem dos deputados citados, mas seguir era comprometer a segurança das famílias.
Lembro também da minha primeira experiência, ainda em 75, meu primeiro ano em Brasília, no Colégio Objetivo, onde também estudava um parente, acho que sobrinho do Vladmir Herzog que ainda em outubro nos disse chorando que o “suicídio” de Vladimir era uma comédia mau orquestrada pelos militares. Até tentamos reagir, com uma tímida tentativa de greve e passeata, logo impedida pelo recado duro do Coronel Cesar, diretor do Colégio, com a lista dos “desordeiros” que queriam afrontar o Exército, Faltei as aulas por dois dias porque meu pai me explicou exatamente o que estava em jogo.
Poderia seguir com muitas outras citações. Sei que é desnecessário porque muitos dos que me leem também viram ou ouviram relatos similares e isto não pode, JAMAIS, ser apagado da memória dos brasileiros.
Fui crítico de inúmeras questões do governo Dilma, mas preciso reconhecer que sua coragem, que talvez tenha até sido um ingrediente do seu impeachment, que permitiu a Comissão da Verdade, a ação mais vigorosa para jogar holofotes nos porões criminosos da ditadura.
Ainda que o texto/testemunho pareça um manifesto de esquerda deve ser entendido como o desabafo de um democrata radical. Continuo dividindo o pensamento distinto em duas vertentes diferentes; a econômica que separa liberais, muito mais próximos da minha leitura, daqueles que preferem um estado onipresente e a questão social, com nítida divisão entre os que acreditam ser obrigação do estado prover com o mínimo de dignidade os mais necessitados, entre os quais me incluo, e aqueles que acreditam que o equilíbrio fiscal e o superavit é a missão primordial.
Reconheço e aprovei a anistia de mão dupla que veio a seguir, mas, por toda a minha vida, jamais me concederei o direito de me calar contra o arbítrio, a tortura, a censura, a privação da liberdade de manifestação e tantas outras restrições que constrangeram toda uma geração de brasileiros.
Repito o grito “Ainda estou aqui” para que ninguém se esqueça.
Escrevo para registrar minha solidariedade e para me associar ao grito dos porões que ainda ecoa em muitas famílias para que jamais se esqueçam de que tudo isto pode se repetir.
Por isso sigo vigilante e acompanho cada relato da aloprada associação entre militares e políticos que quase nos devolveu à escuridão depois de um hiato de sessenta anos.
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