Aborto e saúde pública: para além dos fundamentalismos, a pluralidade no debate
- Fabiana Carvalho
- 18 de jun. de 2024
- 4 min de leitura
O Projeto de Lei No.1904/2024, proposto pelo Deputado Sóstenes Cavalcante (PL), equipara o aborto após 22 semanas de gestação (previsto e regulamentado no Código Penal), ao crime de homicídio. Aprovado em regime de urgência, o projeto poderá ser votado diretamente no plenário da Câmara, sem tramitar por comissões temáticas específicas, entre as quais, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) e a Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM). A aprovação gerou uma série de repercussões junto aos movimentos sociais, em particular, a mobilização de mulheres que reposicionam o debate na arena política brasileira.
O aborto nem sempre foi proibido ou visto como tabu! Há registros de métodos de controle de natalidade e regulamentação sobre o abortamento desde o Egito Antigo, onde o ato era aceito socialmente como uma prática legal e médica. No Ocidente, Grécia e Roma autorizavam interrupções não condenatórias com variações legislativas aplicadas conforme o status social e o tipo de gravidez das mulheres.
A posição de retaliação teve origem na Idade Média, quando a Igreja Católica passou a condenar o ato como pecado grave, perseguindo sistematicamente líderes comunitárias, parteiras, curandeiras conhecedoras de ervas contraceptivas ou abortivas, excomungando as mediadoras do cuidado reprodutivo tanto em gestações como nos abortamentos. A caça às bruxas foi em parte motivada pelo desejo de controle dos corpos femininos como uma maneira muito diretiva de também se controlar – e de se apropriar – o direito à herança das terras comunitárias. Essa posição foi recrudescida durante o Renascimento, passando a ser adotada por religiões protestantes e pelos médicos da época e, em algumas ordens religiosas, persiste até hoje, obstaculizando avanços no tema.
Em contraponto, interpretações da Halachá, na tradição judaica, consideraram o desenvolvimento do feto diferente da vida adulta, facultando o aborto nos casos de risco psicológico, físico ou à vida da pessoa gestante. Em algumas sociedades ameríndias e africanas originárias, permissões foram prescritas em casos de incesto, estupro ou estavam acordadas com as regras sociais locais não culpabilizando gestantes pela interrupção gestacional.
Após a Revolução Industrial, mudanças socioeconômicas e acentuados índices de desigualdade impactaram significativamente a vida de trabalhadoras/es das camadas sociais menos favorecidas; e, para essas/es, o aborto tornou-se uma forma de não comprometimento das condições de vida já precarizadas. Isso se acentua, ainda agora, quando consideramos intersecções de raça e cor, pois corpos negros estão mais vulnerabilizados socialmente e podem enfrentar barreiras no acesso aos serviços de saúde, além dos estigmas racistas que discriminam as pessoas negras que abortam e dos casos onde essas morrem por falta de assistência e segurança. E, se pensarmos em outros atravessamentos, pessoas que gestam e são dissidentes das ordens normativas de gênero, como homens transgêneros ou não-binários, sequer entram nos dados estatísticos sobre o abortamento, pois seus corpos são relegados à invisibilidade ou lhes são negados direitos reprodutivos e saúde básica.
Por outro lado, a gravidez indesejada das pessoas gestantes brancas e com mais privilégios de classe, raça e gênero, quando relacionada à interrupção, é atravessada por facilidades e outros condicionamentos sociais, uma vez que recursos financeiros ou postos de trabalho mais reconhecidos favorecem o aceno ao abortamento seguro (previsto ou não), privacidade, confiabilidade e o sigilo médico em relação à prática.
Também é importante considerar, ao pontuar essa digressão, que a regulamentação sobre o tema, atualmente, entra no território da laicidade, ou seja, passa pelo princípio que garante a separação entre as instituições religiosas – da ordem do privado / particular, das instituições do Estado – que rege o coletivo e a ordem dos direitos civis. Isso significa que as decisões legislativas não devem se basear em crenças ou dogmas religiosos particulares ou tenham um caráter monocrático que desconsidere, por exemplo, as recomendações dos Organismos Internacionais, os avanços dos direitos reprodutivos, as novas descobertas científicas e os princípios democráticos.
Nesse contexto laico, países como o Canadá, onde o aborto é legal e sem restrições à idade gestacional; Reino Unido e Colômbia, que garantem o acesso até à 24ª. semana gestacional e em casos de anomalias fetais e riscos às/aos gestantes; Israel, que flexibilizou a necessidade de Comitê para Encerramento da Gravidez e regulamenta casos permitidos por Lei; e Argentina e França, que asseguraram recentemente o direito constitucional à interrupção da gravidez, alinham suas decisões às questões de saúde pública, à proteção da autonomia, do bem-estar físico e psicológico das pessoas que recorrem às práticas, evitando sequelas, mortes e reduzindo os índices anuais dos abortos inseguros.
Embora a discussão sobre o aborto não seja consensual, é necessário, em seu debate, considerar questões históricas, políticas, éticas, jurídicas, sociais, médicas e subjetivas variantes em diferentes épocas, contextos, classes e pertencimentos étnico-culturais. Sobretudo, para não se misturar legislação e gestão da saúde pública com fundamentalismo, trazendo para a cena política discursos de criminalização e pânico moral que simplificam a questão, assustam, censuram ou punem, ao mesmo tempo em que empobrecem o debate por desconsiderar os direitos e a autonomia reprodutiva de cada pessoa.
Para saber mais:
BRASIL. Atenção humanizada ao abortamento: norma técnica. 2ª. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2014.
FONSECA, J. G. Aborto legal no Brasil: avanços e retrocessos. Curitiba: Editora Aprris, 2018.
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Fabiana Carvalho é Bióloga de formação; Mestra em Educação; Doutora em Educação para Ciências; Pós-Doutora em Educação Científica e Tecnológica. Interessa-se por Pesquisas nas Educações para o Corpo, Gênero, Sexualidade e Diferença, considerando os Estudos Feministas e LGBTQIAPN+. Navega pelos territórios da Biologia e suas imbricações com a Cultura, articulando críticas, discussões biológicas e também literárias sobre diversas questões do cotidiano. Colabora com o Canal “Bisbilhoteiro”, assinando textos para a Coluna “Bisbi Diversidade”.
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