Pausei o outro artigo (parte 1) falando sobre o trabalho penoso a ser feito, pois há uma trama que entremeia tudo.
Zanello (2018) argumenta que o sofrimento psíquico é gendrado, ou seja, os processos são marcados pelo gênero, gerando experiências diferentes para homens e mulheres. As mulheres são frequentemente sujeitas aos dispositivos do casamento, da maternidade e do amor, que impõem silêncio e resignação sobre sua existência. A cultura impõe às mulheres, por exemplo, que só farão sentido em suas vidas a partir da maternidade ou do casamento, que seu valor está vinculado ao homem e ao fruto desse homem – essa ideia manifesta o desprezo pela individualidade feminina como um ser humano único e, portanto, possuidor de vida em si mesma e com condições de tristeza e felicidade dentro e fora dos relacionamentos conjugais.
O que se quer na cultura é impor à mulher um silêncio. Um silêncio destrutivo que, desde muito cedo, ainda em casa, no relacionamento com irmãos e pais, muitas de nós ouvem que não somos nada e que devemos ficar caladas, que não devemos nos manifestar, nos chamam de exageradas quando colocamos para fora o que sentimos e nos sentimos deslocadas, sempre no lugar errado – é o que nos dizem.
As atitudes aprendidas na família de origem influenciam os relacionamentos futuros, perpetuando uma história de maus-tratos ao longo das gerações. Eiguer (1985) e Costa e Katz (1992) sugerem que a escolha do parceiro é influenciada por elementos inconscientes e primitivas relações com os pais, determinando em parte os relacionamentos amorosos e suas dinâmicas de poder.
Essa estrutura preconceituosa é organizada na sociedade e na cultura, nessas relações de opressão, exploração e dominação. Ela se manifesta não apenas nas relações íntimas, mas também em outras relações interpessoais e profissionais, frequentemente de formas sutis e naturalizadas.
Compreender a violência contra as mulheres exige uma análise profunda das estruturas patriarcais e dos modos de subjetivação que sustentam essa violência. É necessário desconstruir o machismo em todas as suas formas e promover uma cultura de respeito e igualdade. A psicanálise, como ação clínica e psicoeducacional, tenta, ao recuperar o singular no coletivo, desempenhar um papel importante nesse processo, oferecendo um espaço de reflexão e transformação para mulheres e homens.
Falo muito sobre Winnicott pois compreendo que a sua abordagem é o que de melhor temos para ajudar famílias a se estruturarem melhor e a compreenderem os problemas e as saídas criativas que possuímos.
Com ênfase nas relações iniciais e no ambiente facilitador, essa abordagem oferece uma lente rica para compreender como o contexto de formação familiar, a subjugação feminina e os atos de violência são engendrados. Destaca-se a importância do ambiente e das primeiras relações na formação do self e na saúde mental dos indivíduos. Esses conceitos são essenciais para analisar como padrões de violência e subjugação podem se enraizar e perpetuar dentro das estruturas familiares e sociais.
O "ambiente facilitador" que sempre me refiro é o ambiente inicial que sustenta e nutre o desenvolvimento emocional da criança. Esse ambiente, geralmente proporcionado pela mãe ou pela figura cuidadora principal, deve ser suficientemente bom para permitir que a criança desenvolva um senso de segurança e confiabilidade no mundo ao seu redor. No entanto, quando esse ambiente é disfuncional ou marcado por violência e subjugação, a capacidade da criança de formar um self coeso e saudável é comprometida.
O self verdadeiro se desenvolve a partir da experiência de ser cuidado de maneira consistente e empática. A ausência de um ambiente facilitador pode levar à formação de um "self falso", onde o indivíduo adota comportamentos e identidades que são respostas adaptativas a um ambiente hostil. Em famílias onde a subjugação feminina e a violência são prevalentes, as crianças podem internalizar esses padrões como normativos, influenciando suas futuras relações e percepções de gênero.
As primeiras relações com as figuras parentais são muito importantes. A interação entre a criança e seus cuidadores estabelece as bases para a saúde mental e emocional. Em um ambiente onde a mãe é subjugada e o pai exerce controle violento, a criança pode desenvolver uma visão distorcida das relações de poder e intimidade. Essas experiências iniciais moldam suas expectativas e comportamentos em relações futuras, muitas vezes levando à repetição de padrões abusivos e subjugadores.
A subjugação feminina e os atos de violência dentro da família podem ser entendidos como expressões de uma dinâmica de poder disfuncional. O que acontece é que o agressor, muitas vezes reproduzindo comportamentos aprendidos na infância, exerce violência como uma forma de afirmar controle e lidar com sentimento de insegurança e impotência. O ambiente familiar disfuncional, ao normalizar esses comportamentos, perpetua um ciclo de violência e subjugação.
Continuemos na parte 3 desse artigo - em breve.
Psicóloga Auriciene Lidório
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Site: www.psicareweb.com.br
Referências para consulta
Bourdieu P. (1999). A dominação masculina. Bertrand Brasil.
Costa, G. P., & Katz, G. (1992). Dinâmica das relações conjugais. Porto Alegre: Artes Médicas.
Daquino, M. (2019). A diferença sexual: gênero e psicanálise. Aller.
Eiguer, A. (1985). Um divã para a família: do modelo grupal à terapia familiar psicanalítica. Porto Alegre: Artes Médicas.
Ferreira, E. D. S., & Danziato, L. J. B. (2019). A violência psicológica na mulher sob a luz da psicanálise: um estudo de caso. Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro), 41(40), 149-168.
Laplanche, J., & Pontalis, J. B. (2019). O vocabulário da psicanálise. Martins Fontes.
Machado, O. (2019). A violência contra as mulheres como crime de ódio.
Nobre, M. T. (2006). Resistências femininas e estratégias de enfrentamento da violência. In A. C. S. Paiva & A. F. C. Vale. Estilísticas da sexualidade (pp. 115-136). Campinas: Pontes Editores
Rosa, M. D., & Domingues, E. (2010). O método na pesquisa psicanalítica de fenômenos sociais e políticos: a utilização da entrevista e da observação. Psicologia & Sociedade, 22, 180-188.
Winnicott, D. W. (1998b). O ambiente e os processos de maturação.
Winnicott, D. W. (2000). Da pediatria à psicanálise.
Winnicott, D. W. (2001). A família e o desenvolvimento individual.
Zanello, V. (2018). Saúde Mental, Gênero e Dispositivos: Cultura e Processos de Subjetivação. Appris.
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