A violência contra as mulheres é uma realidade dolorosa e complexa presente em muitas sociedades ao redor do mundo, incluindo a brasileira. Compreender esse fenômeno é urgente, pois é algo que não cessa sozinho e as estatísticas de violência contra mulheres são assustadoras.
No seu vídeo, Nailor Marques Junior (no Canal Bisbilhoteiro) fala que a violência contra a mulher não é algo que nasce sozinha, mas que é engendrada, arquitetada, planejada e influenciada pelos matizes normativos e constitutivos de nossa maneira de pensar e agir em meio ao nosso caminho familiar, educacional e social. Concordo com isso, e para tentar compreender melhor esse desenvolvimento de pensamento que vai dentro da mente de quem pratica a violência (e de quem a sofre!), precisamos olhar para a construção da violência, onde ela começa e como se desenvolve.
Há algo histórico e social nesse tema, já que em muitas sociedades a mulher é vista como patrimônio pessoal do homem. Um bem, algo que ele pode usar (e abusar!) e descartar quando e como desejar. O “poder” é dele, e ela precisa apenas se submeter ao contexto em que isso acontece, provendo de todas as formas possíveis a satisfação desse homem. Esse entendimento, arraigado em uma estrutura patriarcal, contribui significativamente para a perpetuação da violência. A objetificação das mulheres e o controle sobre seus corpos são aspectos centrais dessa dinâmica, onde o machismo estrutural exerce uma função social de dominação, inferiorizando as mulheres para controlar seus comportamentos e subjugar sua existência. Há um ódio quanto ao feminino, onde os corpos e mentes das mulheres exercem um papel de medo (e é o medo da aniquilação ou da não existência que leva a comportamentos de violência).
As escolhas conjugais são uma história que se repetem. Podemos perguntar: por que mulheres acabam escolhendo cônjuges que as violentam? As histórias de vida das mulheres marcadas pela violência frequentemente estabelecem um padrão de trauma que se repete em suas escolhas conjugais. Ferreira e Danziato (2019) destacam que há um comportamento repetitivo na escolha do parceiro, onde a traição e a negação do sofrimento são comuns. Muitas mulheres permanecem em relações abusivas como uma forma de se significarem enquanto mulheres, acreditando que a violência e o ciúme são provas de amor. Por mais difícil que isso possa parecer, encontro muito disso na Clínica em minha experiência como terapeuta de casais.
Não devemos falar apenas do sintoma: a violência em si, apesar de assumir proporções gigantes, é tratada exaustivamente em várias correntes de pensamento: direito, teologia, filosofia etc. A violência não é apenas um sintoma a ser tratado. A localização da violência como um sintoma individual da mulher é uma visão perigosa, pois pode reforçar a manutenção de uma sociedade patriarcal. Rosa e Domingues (2010) afirmam que o sujeito é produto e produtor da rede simbólica que caracteriza o social e o político. Portanto, é fundamental considerar a estrutura patriarcal e os modos de subjetivação intrincados aos sistemas humanos como cerne do problema.
Ondina Machado (2019) realiza uma investigação psicanalítica sobre a violência contra as mulheres, comparando-a ao racismo como crimes de ódio. Ela descreve a violência contra as mulheres como um "crime de gozo", onde o agressor não suporta que o Outro goze de maneira diversa da sua. Esse tipo de violência revela a radicalidade do ódio contra o feminino, muitas vezes ancorado no machismo estrutural.
“Ah! mas a senhora está misturando tudo” – sim, claro, isso é propositado principalmente porque, para entender o assunto, não podemos tratá-lo de forma isolada, mas como um conjunto bem estruturado que revela a perversão e maldade humana vivida e transmitida ao longo dos séculos nas tentativas de subjugação feminina por parte de quem sempre esteve no poder – “nessa festa de homens”. Há ações, pensamentos, diretivas, entendimentos – tudo isso dentro de nossa cultura humana – que fornecem a compreensão adequada da construção dessa verdadeira teia de violência contra as mulheres – o ponto sempre é mais profundamente enraizado na nossa formação como humanos e não somente um caso isolado.
O trabalho Psicológico é essencial para identificar e trabalhar as particularidades individuais dentro do contexto coletivo, promovendo uma compreensão profunda das experiências únicas de cada paciente. Daquino (2017) enfatiza a necessidade de uma análise cuidadosa das novas manifestações de mal-estar na sociedade, como a violência contra a mulher, o feminicídio e outras formas de discriminação e segregação. Ao focar nas singularidades e respeitar as diferenças, o podemos ajudar a desconstruir preconceitos e fomentar uma cultura de respeito e empatia. Esse é um trabalho penoso e árduo, mas muito necessário.
Continuaremos na parte 2 desse artigo.
Psicóloga Auriciene Lidório
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Referências para consulta
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Costa, G. P., & Katz, G. (1992). Dinâmica das relações conjugais. Porto Alegre: Artes Médicas.
Daquino, M. (2019). A diferença sexual: gênero e psicanálise. Aller.
Eiguer, A. (1985). Um divã para a família: do modelo grupal à terapia familiar psicanalítica. Porto Alegre: Artes Médicas.
Ferreira, E. D. S., & Danziato, L. J. B. (2019). A violência psicológica na mulher sob a luz da psicanálise: um estudo de caso. Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro), 41(40), 149-168.
Laplanche, J., & Pontalis, J. B. (2019). O vocabulário da psicanálise. Martins Fontes.
Machado, O. (2019). A violência contra as mulheres como crime de ódio.
Nobre, M. T. (2006). Resistências femininas e estratégias de enfrentamento da violência. In A. C. S. Paiva & A. F. C. Vale. Estilísticas da sexualidade (pp. 115-136). Campinas: Pontes Editores
Rosa, M. D., & Domingues, E. (2010). O método na pesquisa psicanalítica de fenômenos sociais e políticos: a utilização da entrevista e da observação. Psicologia & Sociedade, 22, 180-188.
Winnicott, D. W. (1998b). O ambiente e os processos de maturação.
Winnicott, D. W. (2000). Da pediatria à psicanálise.
Winnicott, D. W. (2001). A família e o desenvolvimento individual.
Zanello, V. (2018). Saúde Mental, Gênero e Dispositivos: Cultura e Processos de Subjetivação. Appris.
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